CULTURA
DOMINGO, 30 SET
2001
O herético da sanfona
eletroacústica
Valentin Clastrier assume-se como
herdeiro espiritual dos trovadores cátaros da Idade Média. O músico francês
inicia amanhã uma minidigressão pelo país
Experiência
arrebatadora, presenciar um concerto deste músico-trovador dos tempos modernos,
herético da folk, do jazz e da música contemporânea. A sua sanfona
eletroacústica permite-lhe dialogar com Deus sem necessidade de
intermediários. Diálogo frontal, no limite do dilaceramento e do êxtase.
Não é a primeira vez que Valentin
Clastrier atua em Portugal. Esteve numa das edições dos Encontros Musicais da
Tradição Europeia. Os poucos que estiveram presentes nessa ocasião jamais
esquecerão aquilo a que assistiram.
Valentin Clastrier, considerado o
melhor executante e maior inovador de todos os tempos, da sanfona, nome de
culto com igual prestígio entre os adeptos da música folk e da música
contemporânea, entregou-se nessa noite a uma força transcendente, a mesma força
que na Idade Média permitia aos místicos gnósticos dispensarem a mediatização
da Igreja para chegarem a Deus. Cavaleiros do amor, por oposição a cavaleiros
de Roma, os cátaros entregavam-se à ascese enquanto revolução espiritual.
Sediados sobretudo na antiga Occitânia (sul de França), eram os cavaleiros do
Amor e como tal foram perseguidos e condenados como heréticos pela Igreja
Católica. Mas sobreviveram até aos dias de hoje, sob o disfarce da modernidade.
Quando Valentin Clastrier faz soar a
sua sanfona divina, eletrificada e modificada, em improvisações orgásticas (já
lhe chamaram o Paganini e o Hendrix da vielle-a-roue...) ou desenrolando longas
“drones” encomendadas aos anjos, desencadeia em si próprio e no ouvinte um
magma de emoções que não se compadecem com a normal relação músico-ouvinte.
Somos arrastados em conjunto. Fomos arrastados nessa noite em Algés, quando Valentin
fez gritar e chorar a sua sanfona, da qual arrancou sons inacreditáveis, sons
de outro mundo e de outros tempos, sons do fim do mundo. O céu e o inferno.
Rugidos e explosões. Preces e murmúrios. O compasso marcado pelos pés em
hecatombe contra o palco num arrebatamento sem limites.
Já depois do concerto terminado, nos
bastidores, denotando uma serenidade a contrastar com a possessão a que se entregara
minutos antes, Valentin Clastrier falou suavemente de lendas, de santos e demónios,
do estudo e da vivência da espiritualidade trovadoresca aos quais há anos se
dedica, da gnose espiritual e musical, do tempo e da eternidade, da sua posição
de “outsider” no seio da indústria. Loucura santa. Nessa altura jurámos que
haveríamos de o ver “atuar” de novo em Portugal. Era obrigatório que muitos
mais do que aqueles poucos que saíram com a cabeça nas estrelas nessa noite em
Algés, recebessem esta música detentora do poder da transfiguração. Essa
oportunidade chegou. E com ela a claridade.
Valentin Clastrier toca sanfona
eletro-acústica desde 1983. Ele próprio idealizou e construiu um modelo
original deste instrumento muito popular na Idade Média, e adoptado pela cultura
trovadoresca. O modelo que inventou possui mais cordas que o modelo tradicional
e a sua ligação a vários pedais eletrónicos permite-lhe a reprodução de
sonoridades de violino, violoncelo, baixo ou guitarra elétrica. Com base na música
tradicional francesa e italiana, o jazz europeu e a música contemporânea, a par
das potencialidades técnicas e expressivas desta sanfona protótipo, Clastrier
desenvolveu um estilo único que o torna num dos músicos mais originais e
radicais da atualidade. Actuou ao lado de Henri Texier, Michael Riessler, Gérard Siracusa, Michel
Godard, Carlo Rizzo,
Joëlle Leandre e fez parte
do grupo contemporâneo de sanfonas, Viellistic Orchestra. Gravou os álbuns
“Chants de la Mémoire”, “Hérésie”, “Le Bûcher des Silences”, “Palud” e a caixa
de dois CD, “Hurdy-gurdy from the Land of the Cathars”.
De todos eles, “Heresie” é o mais
conhecido e o único que teve distribuição em Portugal. São vários os títulos
deste álbum que Clastrier tocará para o público português nesta sua
mini-digressão por Abrantes, Santiago do Cacém, Silves, Ponte de Sor e
Estremoz, no âmbito do festival Sete Sóis Sete Luas.
“Fin’amors de flamenca” fala do amor
idealizado, a partir de um romance occitano do séc.XII. “Comme dans un train pour une étoile” — “Se apanharmos um comboio para nos
encontrarmos em Tarascon ou em Roma, é como apanhar a morte para viajar no
interior de uma estrela” (excerto de uma carta de Van Gogh ao seu irmão) — foi
escrito para uma peça de teatro em homenagem ao poeta e dramaturgo Antonin
Artaud. “Endura” designa o jejum até à morte dos prisioneiros cátaros, prática
à qual se submetiam como forma extrema de escapar à tortura da Inquisição.
Valentin Clastrier apresentará ainda os inéditos “Au fond des temps” e “Gala”,
dedicado à mulher de Paul Éluard e, posteriormente, Salvador Dali. E “Et la
roue de la vie”, do álbum “Le Bûcher des Silences”, jogo de palavras
continuamente repetidas até “roue de la vie” se transformar em “vielle-a-roue”,
“sanfona”.
Transformação da vida em música.
Alquimia suprema a de Valentin Clastrier, mestre na verdadeira aceção da palavra.
DIGRESSÃO
ABRANTES, dia 1, Cineteatro São Pedro
SANTIAGO DO CACÉM, dia 3, Biblioteca Municipal
SILVES, dia 4, Igreja da Misericórdia
PONTE DE SÔR, dia 5, Teatro Municipal
ESTREMOZ, dia 6, Teatro Bernardo Ribeiro
Todos os concertos às 21h30.
Entrada livre.
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