Músicas
DEATH IN JUNE E
BOYD RICE NO PARADISE GARAGE, ÀS 22H
UM
CONCERTO DOS DEMÓNIOS
O mundo vai acabar. Mas enquanto não
acaba os Death in June encarregam-se de o voltar de pernas para o ar, ao
associarem a morte ao solstício de Junho. A banda de Douglas P. traz a Portugal
os seus rituais e runas do sepulcro, as suas caveiras, canções mágicas e os
ensinamentos de Aleister Crowley. Com eles vem Boyd Rice, que alguém definiu
como o "cruzamento de Bambi com um oficial de satã". Um concerto dos
demónios. Só para iniciados.
ESPÍRITOS
FRACOS devem abster-se de parar amanhã nas imediações do Paradise Garage, em
Lisboa. Realiza-se neste bar-discoteca um ritual em que participam os Death in
June, Boyd Rice e Der Blutharsch. À noite. Na hora do lobo.
Qualquer destes nomes tem um
significado muito especial para o número restrito, mas militantemente fiel, dos
fãs. Integrados numa escola que assimilou o niilismo dos Joy Division, a
violência da música industrial e, numa última fase, um tom acústico falsamente
folk, os Death in June cerram fileiras ao lado dos Current 93, Sol Invictus,
Sixth Comm e, mais ao nível da ideologia do que da estética sonora, dos Psychic
TV, Organum e Coil. Qualquer destes grupos partilha o gosto pela magia negra, o
ocultismo de cores sombrias e sonoridades sinistras que podem ir da electrónica
tecno a baladas "inocentes" executadas em guitarras acústicas.
Aleister Crowley é uma das referências recorrentes. Current 93, por exemplo,
projeto de David Tibet, antigo elemento e atual colaborador dos Death in June,
faz parte da numerologia mágico-simbólica do mago negro que, no princípio do
século, viajou de propósito até Lisboa para conhecer Pessoa.
Os Death in June – designação que
encerra toda uma filosofia, na associação da morte ao solstício de Junho, o
auge da vida – nasceram em 1980 das cinzas de dois grupos feridos pela tragédia
dos Joy Division e ainda encharcados com o sangue que escorreu das feridas do
punk: Crisis e The Runners from 1984. Douglas Pearce, ou Douglas P., como se
autodesigna, e Tony Wakeford desde cedo assumiram a liderança ideológica do
grupo, conotado no exterior do seu círculo mágico com a extrema-direita. A
utilização sistemática como logotipo (geralmente impresso em relevo nas capas
dos discos) da caveira ("Totenkopf") usada pelas SS nazis não ajuda a
desfazer esta impressão. Decorridos três anos, Wakeford desistiu do projeto e
formou os Sol Invictus, deixando terreno livre a Douglas P. para ajustar a
focagem aos Death in June.
Para Douglas P. os Death in June
representam um veículo de propaganda de uma doutrina que vive da e para a
ambiguidade. Cada espetáculo é um ritual em que as palavras, a manipulação de
runas (a "escrita secreta" dos antigos povos do Norte da Europa, em
particular da Islândia, pátria ancestral de feiticeiras) e a sugestão (prática
indispensável da magia) valem tanto como os sons, na construção de uma igreja
negra cujas ramificações na Europa não param de crescer.
Do caos à disciplina
O acompanhamento da evolução musical
dos Death in June permite compreender o movimento do mundo numa altura em que o
Apocalipse despeja já para dentro das cabeças dos seus habitantes o seu dilúvio
de fogo. Nos anos 80 as convulsões da música industrial condiziam com o
terrorismo do medo. O planeta Terra era um pobre animal devorado pelas
mandíbulas de metal de um gigantesco mecanismo triturador. Os cérebros
agonizavam. Alguns diluíram-se no transe da música de dança e num psicadelismo
de sinal (aparentemente) contrário ao dos anos 60, correspondente, nas esferas
interiores, aos chamados "novos primitivos" e a uma nova onda de
paganismo. A música dos Death in June obedecia a esta vaga de peso, na
celebração de um universo conceptual que tanto fascinava os apreciadores do
gótico, como os que já não se identificavam com as teorias do caos e do horror
protagonizadas, à saída do punk, pelos Throbbing Gristle, precursores da música
industrial. Os Death in June propunham, como alternativa, a ordem e a
disciplina, sendo prática frequente os elementos do grupo surgirem nos
concertos com fardas militares.
"The Guilty Have no
Pride", "Nada!" e o LP duplo "The World that Summer"
são alguns dos trabalhos mais significativos dos Death in June nesse período.
Elucidativo da ideologia subjacente é o título de um dos seus 12 polegadas:
"Come before Christ and murder love"/"Chega antes de Cristo e
assassina o amor".
Em "Brown Book", de 1987,
é já visível uma inflexão na sonoridade dos Death in June, que,
progressivamente, vão desligando os sintetizadores e outras maquinarias do inferno
para deslocarem os seus feitiços para uma música plena de bucolismo e alusões
ao imaginário folk. Mas agora congelado pela mão do demónio. David Tibet, dos
Current 93, reeditou há alguns anos, com novo título, um dos primeiros álbuns
da diva da folk britânica, Shirley Collins. De um só golpe a música tradicional
ganhava conotações luciferinas.
"The Wall of Sacrifice" enceta a nova
máscara de suavidade dos Death in June, que Douglas P. aprofunda no posterior
"But, what Ends when the Symbols Shatter". "The
Cathedral of Tears", "Flowers of Autumn", "93 Dead
Sunwheels", "Burial" e "Ostenbraun" adicionam novos
capítulos à saga, com a recorrência de temas que vão passando por sucessivas
metamorfoses, em versões ao vivo ou sujeitas a remisturas.
Boyd Rice, alter ego do projeto Non,
é mais óbvio. Um jornalista americano definiu-o como um "cruzamento de
Bambi com um oficial de satã". Outros chamaram-lhe "nazi". Na
sua obra, disponível em Portugal no álbum "Music, Martinis and
Misanthropy", de 1989, a violência ganha corpo e funciona como arma.
Apêndice infectado da música industrial – no limite da loucura que Jim
Thirlwell, aliás Clint Ruin, aliás Scraping Foetus off the Wheel, sublimou em
moldes mais "artísticos" –, a revolução de metal, vísceras e totalitarismo
cultivada por Rice inscreve-se no mesmo projecto global de que fazem parte os
Death in June, justamente designado "The Demonic Revolution". Boyd
Rice, que recentemente participou como ator em "Pearls before Swine"
(paródia às fitas de James Bond), estará no Paradise Garage para apresentar o
"trailer" deste filme, curtas-metragens porno e anúncios
"kitsch" dos anos 60.
Uma noite de trevas que se completa
com os sons medievais/ambientais dos Der Blutharsch, do músico austríaco Albin
Julius, fundador dos The Moon Lay Hidden beneath a Cloud e colaborador no mais
recente trabalho dos Death in June, "Take Care and Control".
Coincidência ou perversão: um dos
endereços dos Death in June na Internet tem a assinatura de Brian Oblivion,
personagem virtual de "Videodrome", quanto a nós e até ao
visionamento de "eXistenZ", o filme de David Cronenberg que melhor
faz a autópsia da alucinação e da paranoia do fim de século. Os Death in June
são mais poéticos – fazem murchar as rosas.
DEATH IN JUNE, BOYD RICE, DER
BLUTHARSCH
Lisboa, Paradise Garage
sexta-feira,
7 Maio 1999
ARTES &
ÓCIOS
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