cultura TERÇA-FEIRA, 23 FEVEREIRO 1999
Pouco público no Festnia
Música do mundo para poucos
Fraca afluência de público e bons concertos têm sido uma constante do Festnia, festival de world music que desde o início do mês está a decorrer no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém, em Lisboa. Assim voltou a acontecer no último fim-de-semana, com Tito Paris, músicos do Rajastão e Papa Wemba a fazerem vibrar um número limitado de espectadores.
Tito Paris foi o grande triunfador da noite de música de Cabo Verde que preencheu o programa de sexta-feira do Festnia. Excelente o modo como o guitarrista e cantor, que Bana trouxe para Portugal aos 19 anos de idade, comunicou com o público, incendiando os ânimos, não só através da música como também pela intuição da estrutura e do ritmo que um espetáculo com as características do seu deve ter. Com Tito Paris a música de Cabo Verde torna-se universal sem sucumbir à descaracterização. Mornas e coladeras encheram-se de cores jazzísticas, mescladas de oceano e de saudade, sem perderem de vista o horizonte das ilhas do arquipélago. Instrumentalmente, o grupo demonstrou uma segurança a toda a prova, com destaque para o saxofonista Otis, interveniente ativo de um espetáculo que teve um dos seus momentos mais altos quando ele próprio e o percussionista Jair entraram pelo meio da plateia mantendo um diálogo caloroso entre o saxofone e a voz. Um amigo pessoal de Tito Paris, convidado na ocasião para subir ao palco, dominou por alguns instantes as atenções, com um curto "show" de passos de dança, visual anos 70, harmónica ultra-amplificada e uma divertida "gaffe" gramatical que o fez trocar "e assim sucessivamente" por "e assim simultaneamente". Já na parte final do espetáculo Tito convidou, por sua vez, Hermínia e Lura para o acompanharem num canto a três que em vez da apoteose esperada acabou por constituir um anti-clímax, com a primeira algo hesitante e à segunda a serem dadas poucas oportunidades de brilhar.
Hermínia e Lura, antes de Tito Paris, apresentaram duas perspetivas antagónicas da música tradicional de Cabo Verde. Hermínia, figura franzina e voz aguda carregada de vibrato, está mais próxima das raízes mas falta-lhe a presença (e, já agora, a imponência do corpo) e o carisma de Cesária. Lura, pelo contrário, revelou-se tanto aos ouvidos como ao olhar. Dona de uma voz mais potente e "redonda" que a de Hermínia, Lura mostrou apetência pelo entretenimento puro, apresentando uma música onde as raízes vêm embrulhadas no celofane de um "music hall" de casino. Pouco genuína mas indiscutivelmente agradável de se ouvir. Para não variar, foi o homem dos saxofones, Nandinho, a fazer as despesas do espetáculo, em incursões por um jazz de fusão onde correram ecos de Wayne Shorter, dos Weather Report.
Danças da alma
Em lugar da febre de sábado à noite, o concerto de música indiana programada para este dia pautou-se por uma sessão de meditação. Não que a música trazida pelos seis cantores e instrumentistas oriundos do Rajastão, da Índia dos marajás, se revelasse exclusivamente vocacionada para os grandes silêncios que são o motor da contemplação. Pelo contrário, os seus cânticos e instrumentais, evolando-se de corpos que pareciam pregados ao estrado, fazem dançar. Mas as dança da alma. Em volutas internas que transformam o corpo num templo atravessado pela luz.
Da imobilidade aparente dos seis executantes soltou-se uma música elevada onde se entra como num rio. Uma vez lá dentro, o horizonte estende-se sem limitações, com os ritmos intricados do "mridangam" (percussão) e as vibrações celestiais do "sarangi" (tocado com arco) a desenharem padrões de incrível complexidade harmónica nos quais a imaginação se perde e se deleita. Um dos instrumentistas/cantores transformou a matemática e a linguagem gestual em poesia pura, em solos executados em pequenas castanholas ("kartãl") que pulverizaram o compasso, desmultiplicando-o numa tabuada de contas sagradas. Um dos melhores espetáculos, até agora, de todo o festival.
O penúltimo fim-de-semana do Festnia encerrou com a folia e a extroversão africanas do grupo do zairense Papa Wemba, o tal que alia o gosto pela música ao da moda. Num registo diametralmente oposto ao do concerto da véspera, tudo na prestação de Papa Wemba foi alegria e movimento do corpo.
Ocidentalizado, sem dúvida, elétrico como mandam as regras do mercado de Paris, capital da "world music" para exportação, Papa, vestido de negro e barrete branco, fez o que tinha a fazer, pondo toda a gente a dançar, numa incitação constante à viagem por diversas geografias centradas em torno do equador. Uma rumba de Kinshasa, no Congo, fez reviver o velho conceito de "música para constituir família", posto religiosamente em prática por alguns casais da assistência.
Mas a locomotiva esteve pouco tempo parada nessa estação, avançando de novo a toda a velocidade pelos ritmos abrasivos do Zaire, numa demonstração de profissionalismo que culminou num solo de djembé (a princípio ensurdecedor, dado o exagero da amplificação...), pelo percussionista Mousa Sissokho, e com o cantor e as duas vocalistas de apoio do grupo aos pulos e aos gritos, empenhados em fazer a festa.
Já no segundo "encore" Papa mostrou o outro lado da sua música, numa balada lunar onde explorou a faceta mais intimista do seu canto, tendo como único acompanhamento o piano de Patrick Etonde-Bebey.
O Festnia termina no próximo fim-de-semana alargado, com concertos de Alan Stivell (quinta-feira), e os tambores japoneses dos Matsurishu Taiko (sexta, sábado e domingo).
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