23/12/2016

Inquérito a Suzanne [Suzanne Vega]

cultura QUARTA-FEIRA, 16 JUNHO 1999

Cantora nova-iorquina atua hoje no Porto

Inquérito a Suzanne

Depois de Lisboa, o Porto recebe hoje Suzanne Vega, a cantora a quem chamam “a garota de Nova Iorque” e “a mulher que tombou do paraíso”. Ela não se considera nem boa nem má rapariga, mas uma sonhadora. No seu livro de sonhos cabem o amor pela filha, Ruby, um livro de Emily Brontë, um filme com Marilyn e uma canção de Lou Reed.

Em vez da entrevista convencional, o PÚBLICO propôs a Suzanne Vega uma espécie de inquérito, que teve o condão de lhe provocar umas vezes surpresa, outras embaraço. Mas ela divertiu-se e nós também. Hoje à noite, no Cinema do Terço, às 21h30, é a vez de o Porto saborear a voz, as estórias e as canções de Suzanne Vega.
         PÚBLICO – Escolha três das suas canções para dedicar à sua filha Ruby.
            SUZANNE VEGA – “Birthday”, de “99.9 Fº”, “World before Columbus” e “Caramel”, ambas de “Night Objects of Desire”.
         P. – Mais uma para oferecer ao seu pior inimigo.
            R. – Oh, essa é das difíceis. Nunca escrevi para os meus inimigos. Embora “Rock in his pocket (song for David)” pudesse ser utilizada com esse fim…
         P. – Gostaria de ser lembrada como a Joan Baez dos anos 90?
            R. – Gosto imenso de Joan Baez, pelo seu envolvimento político e pelo humor. Mas não gostaria de ser comparada com ela porque é uma grande cantora e uma compositora razoável, enquanto eu prefiro ser recordada como uma excelente compositora com uma voz razoável.
         P. – Imagine que nunca tinha ouvido música rock antes. Sentiria hoje o mesmo impacto que sentiu na sua adolescência quando assistiu a um concerto de Lou Reed?
            R. – Provavelmente, sim. O que eu sempre achei interessante nele são as estórias por detrás das canções que, por regra, são tocantes. Não foi o som que me impressionou quando o ouvi pela primeira vez, podia estar a tocar uma guitarra ou um ukelele que não faria a mínima diferença. Não teve nada a ver com ser ou não música rock. Estou-me nas tintas para o rock.
         P. – Conte-nos uma boa história passada num restaurante famoso, o Tom’s Diner, que costumava frequentar e sobre o qual compôs, aliás, uma canção.
            R. – Famoso, agora, porque na época em que escrevi sobre ele era um local pequeno e sujo onde as pessoas iam beber café à noite. Depois tornou-se limpo e famoso. Há uns anos filmaram cenas da série de TV “Seinfeld” frente à fachada…
         P. – Qual dos rótulos se aplica melhor a si: “Bon chic bon genre” ou “As boas raparigas vão para o céu, as más vão para o inferno”?
            R. – [risos] Não me considero nem boa nem má rapariga. É uma pergunta delicada… Sou independente. Quando se está a crescer, as pessoas acham que somos bons ou maus, a mim disseram-me sempre que era uma pessoa enfiada no meu mundo, um mundo de sonhos.
         P. – Por falar em sonhos, qual é o seu sonho mais brilhante?
            R. – Deixe-me pensar… Ter mais dois filhos com quem a Ruby possa brincar. Levar a vida de que gosto, o que estou prestes a conseguir, com dinheiro suficiente para poder cantar e tocar apenas quando me apetece. O meu ritmo é lento, como tal gostaria de nunca ter que me apressar para chegar a algum lado. E atirar o relógio para o lixo.
         P. – O seu pesadelo mais sombrio?
            R. – Ser pressionada para passar de uma coisa para outra. Ter que me confrontar com as “deadlines” dos outros, fazer o que me dizem sem ter oportunidade de dialogar.
         P. – O seu desejo mais obscuro?
            R. – Não respondo. As perguntas estão a entrar num território demasiado pessoal! Talvez lhe conte alguma coisa daqui a uns dois ou três anos, se passar por aqui [risos].
         P. – No seu livro “Urgent Whispers” (“Murmúrios Urgentes”, ed. Assírio & Alvim), ao ouvir fado, escreve que a alma dos portugueses está nas canções que canta. A sua alma onde está?
            R. – Nas palavras, nas letras que escrevo. Um pouco, também, nas melodias que, regra geral, são tristes.
         P. – Paixão e amor são duas coisas diferentes? Uma pode existir sem a outra?
            R. – Uma pode existir sem a outra, embora de forma não satisfatória. É uma pergunta interessante porque estou, precisamente, a passar por um processo de separação. O meu casamento acabou e tenho pensado sobre esse tipo de questões.
         P. – Sexo virtual?
            R. – Existe, mas não é nada que eu recomende. É sexo apenas com a mente. Como um jogo de vídeo. Ou pornografia.
         P. – Monica Lewinsky e Bill Clinton. Quem é a vítima e quem é o culpado?
            R. – Oh, não! Para ser sincera, penso que foram os dois uns idiotas. Talvez tenha sido ele a vítima… Se considerarmos que ela lhe apareceu, logo ao primeiro encontro, vestida apenas com roupa interior… Do que é que ela estava à espera? Por outro lado, ele mostrou ser um homem que não se consegue controlar nesse género de questões… O tratamento jornalístico dado ao caso é que foi completamente desapropriado, fora de controlo. A vítima real acabou por ser Hillary Clinton.
         P. – Mário Soares, ex-presidente de Portugal, conhece e gosta da sua música. E Bill Clinton?
            R. – Não deve ligar nenhuma, tem outras coisas em que pensar, acredite! Mas sei, através de uma carta que recebi de Tipper Gore, mulher do vice-presidente, que ela gosta imenso de “Luka” e ainda ouve o meu segundo álbum, “Solitude Standing”.
         P. – Um crítico referiu-se a si uma vez como “a rapariga que tombou do paraíso”. Agora que já conhece bem o planeta Terra, sente-se melhor aqui ou tenciona voltar para o céu?
            R. – A Terra é ok, já me habituei.
         P. – “O paraíso é um lugar onde nunca acontece nada”, escreveu David Byrne numa das suas canções. Concorda?
            R. – Não penso assim. Seria demasiado chato. A minha filha, de quatro anos, disse-me esta manhã que chegou de Vénus (risos)…
         P. – “The girl from Ipanema” é uma das suas canções favoritas. Considera-se “The girl from New York”, como alguém já lhe chamou?
            R. – Claro! Adoro ouvir isso! Há milhões de raparigas em Nova Iorque, quem é que não gostaria de ser encarado como símbolo da cidade?
         P. – Com qual destas artistas gostaria de trabalhar: Laurie Anderson, Joni Mitchell ou Rickie Lee Jones?
            R. – Provavelmente, Laurie Anderson. Gosto muito de Rickie Lee Jones, com quem já me encontrei em diversos concertos. Mas com Laurie, sinto que somos compatíveis. Já foi minha vizinha e tomei o pequeno-almoço várias vezes com ela. Tem uma personalidade avassaladora. Mesmo quando está a falar de coisas simples, é uma pessoa interessante de observar e de ouvir.
         P. – E dos homens: Stan Ridgway, Tom Waits ou Tim Buckley, se ainda fosse vivo?
            R. – Stan Ridgway! É fantástico, além de ser um excelente contador de histórias, os seus espetáculos têm uma força impressionante. Assisti uma vez a um deles e fiquei completamente de rastos. Tom Waits tem uma personalidade demasiado egocêntrica e carismática para partilhar o palco com mais alguém.
         P. – Mitchell Froom (marido e produtor dos dois últimos álbuns da cantora, “99.9 Fº” e “Nine Objects of Desire”) mudou mais a sua música ou a sua vida?
            R. – Mudou ambas. E hoje mais do que nunca por causa da nossa filha. Na música, ajudou-me a trazer à superfície algo que já existia antes mas estava escondido, uma qualidade abrasiva e facetas de alienação, de violência. Encontrou o som certo para as minhas palavras.
         P. – Philip Glass, no seu estatuto atual, capaz de escrever uma ópera todos os dias, é um génio ou um chato? Não precisa de responder…
            R. – Outra pergunta interessante, sou fã dele, por isso claro que é um génio. Uma vez cometi o erro de levar o flautista do grupo a um concerto dele. Não conseguiu suportar mais do que 15 minutos. Claro que às vezes poderia compor coisas com menos de duas horas de duração… Um dos meus discos favoritos é “Mishima”. No ano passado assisti a um concerto em que apresentou a sua versão de “Low”, de David Bowie. Achei fantástico. Está cada vez melhor com a idade.
         P. – Gostou do modo como ele trabalhou as suas canções em “Songs from Liquid Days”?
            R. – Na altura soaram-me um bocado estranhas. Lembro-me de ter torcido o nariz e pensado que eu teria feito de outra maneira. Mas não me competia a mim decidir.
         P. – Se conseguisse escapar ao fim do mundo que livro levaria consigo? Disco? Filme? Canção? E uma das suas canções?
            R. – Livro: “O Monte dos Vendavais”, de Emily Brontë. Disco: “The Songs of Leonard Cohen”, de Leonard Cohen. Filme: teria que ser alegre o que é difícil já que tenho tendência para gostar de filmes sombrios como “Repulsa”, de Roman Polanski. “Rebeca”, de Hitchcock, também é bastante bom mas deprimente. Talvez “There’s no Business like Showbusiness”, com Marilyn Monroe. Sim, levaria esse. Canção: “Walk on the wild side”, de Lou Reed. Das minhas: “The queen and the soldier”, por qualquer razão, as pessoas das mais diversas culturas parecem compreender e gostar dela. Tornou-se ainda mais popular do que “Luka”.
         P. – Ainda vai ter tempo para gravar um novo álbum?
            R. – Espero que sim. Mas vou ter que andar depressa. É a maior “deadline” de sempre (risos). Espero ter todas as canções prontas até Outono e fazer sair o disco na Primavera.
         P. – 99,9º graus Fahrenheit de febre. Que acontece quando se chega aos 100?
            R. – Começa-se a alucinar. É quando percebemos que estamos realmente doentes.
         P. – Uma das suas canções chama-se “Tired of Sleeping”, “cansada de dormir”. Alguma vez se sentiu cansada de estar acordada?
            R. – Constantemente! Apesar da canção, nunca fico cansada de dormir. Quem me dera dormir mais! É algo que não tenho feito nos últimos tempos. Desde que a minha filha nasceu, há quase cinco anos, não consegui dormir duas noites seguidas.
         P. – Alguém lhe oferece uma fortuna para fazer um concerto só com versões instrumentais. Aceitaria o desafio?
            R. – Não. Porque não teria muito sucesso. Tudo o que existe de importante nas minhas canções está nas letras. Seria um concerto chato e as pessoas pediriam de volta o dinheiro dos bilhetes. Os organizadores iriam à falência e eu nunca mais poderia voltar a trabalhar.


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