23/12/2016

Completamente normal [Pascal Comelade]

cultura QUINTA-FEIRA, 24 JUNHO 1999

Entrevista com Pascal Comelade, em concerto hoje em Coimbra, amanhã em Lisboa

Completamente normal

Colorida de absurdo e poesia, a música de Pascal Comelade é feita de recordações. Fora de moda e fora do tempo. Já tocou com os Faust e com o baterista dos Can. Faz versões-desmontagens de canções pop e compôs para Bob Wilson. Em Portugal, há uns anos, teve a acompanhá-lo o coelho das pilhas Duracell. Desta vez traz um grupo, o inseparável piano de brinquedo e sons do seu bordel musical.

"Considero o piano de brinquedo um instrumento completamente normal" diz ao PÚBLICO Pascal Comelade como justificação para o fascínio que esta miniatura exerce sobre a sua música. Já em relação a Comelade não é possível ter tantas certezas sobre a normalidade, ou aquilo que entendemos como tal. "Com o tempo esquecemos a função original do objeto que, no caso do piano, é um brinquedo para crianças, até se tornar um instrumento completamente normal", insiste, pondo a tónica na "normalidade".
            Um dos álbuns deste compositor catalão, que hoje atua em Coimbra e amanhã em Lisboa, chama-se "Musique pour Film, Vol. 2". Nada de especial a assinalar. Que pode haver de especial a assinalar numa banda sonora? Não é assim tão simples. Comelade não compôs para filme nenhum - a fazê-lo, diz, só "de desenhos animados" - e não existe nenhum primeiro volume da obra. Completamente normal...
            Foi em 1983 que Comelade montou a sua Bel Canto Orquestra, "inteiramente constituída por instrumentos de brinquedo, saxofones de plástico, trompetes de plástico, guitarras de plástico". Mas a música deste coletivo de "não músicos", um pouco à semelhança da Portsmouth Sinfonia criada na década anterior por Brian Eno, não soa, de modo algum, a plástico, mas ao próprio movimento da vida. Feita de evocações, quadros desbotados, fotos do século passado e livros de gravuras antigos. Satie e Nino Rota observam. Irrompem fanfarras, como a de Perpignan, que o catalão assimilou como um tesouro na sua infância. Ouve-se o ruído dos riscos de velhos discos de 78 rpm que o pai punha a rodar em casa, com folclore da Arménia, da Geórgia, dos Balcãs. Deixaram lastro. Ecos distorcidos de músicas com sabor e aroma. Lugares e personagens estranhas, como as da Adèle Blanc-Sec, recortadas da banda desenhada de Tardi. Haikus flutuando do Oriente, que Comelade ama sem saber porquê. E canções com títulos impensáveis: "La cathédrale des cure-dents", "J'irai verser du nuoc-mam sur tes tripes", "Le dompteur de mouches de Figueres", "Dali's mustache with gitano's chausssure"...
            Mas todos os edifícios, mesmo os de arquitetura mais bizarra, necessitam de alicerces. Os de Comelade estão fixos nos anos 70, na música dos ZNR, de Hector Zazou e Joseph Racaille ("Barricades 3" é um dos álbuns que mais o influenciou). Outra obra marcante foi o primeiro álbum dos Penguin Cafe Orchestra, editado na coleção Obscure, de Brian Eno, em particular a faixa que ocupa um dos lados do disco ("Z.O.P.F."). "Indivíduos que, numa determinada época e no mundo das chamadas novas músicas, estavam isolados e que faziam apelo à melodia".
            Pascal é um primitivo. Interessa-lhe o gesto primordial, a essência não adulterada: "Interesso-me por todas as velhas músicas, pelo que têm de instintivo". Gravou "El Primitivismo". Adere a fundações como L'Association des Amis d'Arsène Lupin, L' Association des Amis de Alfred Jarry. "É a parte da cultura francesa que me interessa", diz, ao mesmo tempo que elogia surrealistas como Alfred Jarry, Arthur Cravan, Jacques Rigaud ou Jacques Vachier. "Marginais, mesmo dentro do movimento".

“Um prazer egoísta”

            Escreve uma "Enciclopedia Logicofobista de la Musica Catalana", "dicionário de situações de indivíduos atípicos, incongruentes ou bizarros" da música na Catalunha. "Tudo verdade, não inventei nada", garante. Instala-se em Vernet-les-Bains, estância balnear do século passado cujo nome é tão evocativo como os títulos das suas canções e à qual dedica, aliás, uma.
            Em Tóquio escreve os arranjos para a "Ópera dos Três Vinténs", de Weill. Assina versões de canções de Robert Wyatt, Faust e dos Stones. E álbuns como "Haikus de Piano", "Traffic d'Abstractions" e "El Cabaret Galactic". As canções trocam de nome e de lugar, vestindo-se de novo e repetindo-se de álbum para álbum. "É uma confusão", reconhece, "tem sido assim deste o início, não sei porquê."
            Toca ao vivo, "guitarra de plástico", com os Faust, "The sad skinhead", uma canção deste grupo germânico incluída em Faust IV", em 1997, em Lîlle. "Foi uma das maiores honras da minha vida, atuar ao lado de Jean-Hervé Peron" [ex-baixista daquele grupo alemão]. E com Jaki Liebezeit, baterista dos Can, que chega a fazer parte da sua Bel Canto Orquestra, também em 97. "Um ano bizarro. No mesmo ano gravei com Péron e com Liebezeit, quando há 20 anos não passava de um fã dos Faust e dos Can".
            P.J. Harvey canta em dois temas de "L'Argot du Bruit", um dos seus álbuns recentes. "Encontrei-a por acaso. Aliás, tudo o que faço é por acaso”. Há cerca de uns cinco anos, numa entrevista em Espanha para a revista “Rock de Luxe”, o jornalista perguntou-lhe que música é que costumava ouvir em casa. A resposta foi: Captain Beefheart e Pascal Comelade. “Há dois ou três anos enviei-lhe uns discos meus. Respondeu-me passados dois dias. Encontrámo-nos pouco depois em Paris. Mas ainda levou algum tempo até à nossa colaboração".
            O último, "Zumzum-ka", fala da relação entre a função simbólica da letra "K" e o zumbido das abelhas. Compôs a partitura de "Wings on Rock", com coreografia de Bob Wilson. Não foi fácil. "Tem um tema de 55 m, enquanto as minhas canções raramente ultrapassam os 2m30...".
            Pascal Comelade define a sua música como "um bordel". É capaz de ter razão. "A música que faço está absolutamente desfasada do que se faz hoje. Não me preocupo com quaisquer noções de atualidade técnica ou com a História. É verdade que há um lado poeirento na minha música... Pertenço ao passado, sou um velho músico [risos]. O problema no Ocidente, hoje, é que todos os dias nos apontam a questão dos jovens. Eu, sou como os Cramps, há 20 anos que faço o mesmo disco e a mesma música. É o que me dá prazer. Um prazer egoísta...”
            A formação da Bel Canto Orquestra que vem a Portugal é composta por Gerard Meloux (guitarra acústica e bandolim), Patrick Cheniere (bandolim e guitarras), Patrick Felices (baixo), Philippe Dourou (percussão) e Jakob Draminsky (saxofone e brinquedos). Pascal Comelade tocará piano e brinquedos.

PASCAL COMELADE E BEL CANTO ORQUESTRA
COIMBRA Teatro Gil Vicente, hoje às 22h30
LISBOA Grande Auditório do CCB, amanhã às 21h30

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