19/12/2016

Explosão Kepa [Festival Cantigas do Maio]

SEGUNDA-FEIRA, 31 MAIO 1999 cultura

Acordeonista basco e ciganos da Roménia “arrasam” no Seixal

Explosão Kepa

KEPA JUNKERA destroçou, literalmente, todos os obstáculos que se lhe depararam, na noite de sábado, segunda do festival Cantigas do Maio, que este fim-de-semana teve a sua primeira etapa no Seixal. Kepa pulverizou todas as expetativas. Conseguiu mesmo a maior proeza de todas: calar uma parte do público que fora para ali palrar em voz alta. Há também os que ouvem música com as mãos e aproveitam a menor aceleração dos instrumentos para bater palminhas fora do compasso. Até esses Kepa e a sua banda levaram de vencida.
            Na música de Kepa Junkera o prazer da festa e a comunicação intensa com o público andam a par da experimentação e da complexidade que se notam, sobretudo, no discurso a solo do virtuoso da “trikitixa”, que terá assinado (diz quem já o ouviu várias vezes ao vivo) na noite de sábado no Seixal um dos melhores concertos da sua carreira. Kepa fintou, acelerou, guerreou e dançou com o seu acordeão. Os outros elementos da banda ajudaram ao ritual. Se quisesse, o acordeonista podia conquistar uma plateia de rock. Encher estádios. Pôr dezenas de milhares aos pulos.
            O som da “txalaparta”, espécie de xilofone gigante tocado a quatro mãos por Harkaitz Martinez e Igor Otxoa, constituiu uma força dentro da força, ritmo da terra e da madeira, minimalismo étnico, chamem-lhe o que quiserem. Chegou a ser épico, quando a batida se aproximava das ancestrais danças “morris” inglesas, lembrando os feitos gloriosos dos Albion Band ou a energia magnética que percorria a “big medieval band” de Shirley Collins. O público enlouqueceu. Sempre em crescendo, com um domínio absoluto do tempo (dentro de cada tema e na estrutura de todo o espetáculo), Kepa Junkera ultrapassou tudo o que dele se esperava, terminando em velocidade vertiginosa, com a “trikitixa” em sangue, a pedir clemência. Mas também ela, como toda a gente nesta noite que ficou para a História, estava feliz.
            Que fazer depois de uma loucura destas? A Fanfare Ciocarlia, que veio a seguir, conseguiu o inacreditável: animar ainda mais o público, levando-o ao paroxismo. Habituados a tocar nas cerimónias festivas da sua Roménia natal, durante 24 horas ou mais, a banda cigana carregou com toda a força no pedal do acelerador até ser preciso gritar: “Basta!” Sousafones e uma tuba, trompetes e um clarinete, um tambor a trabalharem sem descanso. “É a fúria dos Balcãs!”, gritava alguém, em delírio. “Por estas e por outras é que a NATO não se atreve a combater no terreno, na Jugoslávia”, exclamava outro. Mas era impossível acompanhar até ao fim a pedalada da Fanfare Ciocarlia, depois do esforço despendido com os bascos. Houve quem dormisse, derrotado. Mas a maioria dançou até cair para o lado, bebendo até à última gota uma das melhores noites de “world music” de que há memória em Portugal.
            Tudo o resto se apagou: o classicismo dos JPP, que, na véspera, trouxeram da Finlândia intrincadas harmonias violinísticas e a arte do contraponto, o baile habitual da Brigada Victor Jara e a religiosidade das polifonias vocais dos Camponeses de Pias e do Tavagna, da Córsega. Ou a festa que aconteceu depois, já na tenda de convívio, onde os corsos fizeram erguer o som das suas vozes acima do barulho dos copos e se revelou o talento de Francisco Pimenta, um jovem tocador de gaita-de-foles que irá dar que falar.
            O Cantigas do Maio termina no próximo fim-de-semana com Yungchen Lhamo (quinta-feira, 3, no Fórum Cultural), Galata Mevlevi Musik e Sema Ensemble, La Bottine Souriante (sexta, 4, na Fábrica Mundet), Susana Baca e Milladoiro (sábado, 5, na Mudet).

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