SEGUNDA-FEIRA,
28 JUNHO 1999 cultura
Meira
Asher faz história no festival Ritmos
Birkenau
aqui e agora
A música da
israelita Meira Asher é a verdadeira música do mundo. Não do mundo da tradição,
mas do mundo atual, em agonia, à beira do novo milénio. A sua passagem pelo
festival Ritmos/Festas do Mundo, no Porto, provocou arrepios. E algum
escândalo.
Ninguém ficou indiferente ao espetáculo alucinante que Meira Asher
apresentou, sábado, no festival Ritmos/Festas do Mundo, que ontem terminou no
Porto. "Loucura total", exclamaram, deslumbrados, os que aguentaram o
embate. "Vamos fugir deste inferno!", arrepiaram-se uns quantos, que
não suportaram ter de enfrentar cara a cara o pesadelo.
Festa e alegria
são palavras sem sentido na carnificina que a israelita trouxe ao Palácio de
Cristal, onde o festival teve lugar. Pelo contrário, a sua
"performance" terá constituído, para alguns, um fardo difícil de
suportar. Foi um vómito de sangue, um combate de vida e de morte contra a
passividade e a indiferença. "Este projeto é um sinal de alarme que
retrata o indivíduo vítima de uma realidade repetitiva, brutal e alienante. Uma
realidade que contamina toda a gente com as doenças crónicas da cobardia e da
apatia", diz Meira Asher, a propósito de "Spears into Hooks" e
da prestação ao vivo que lhe corresponde.
Conseguiu
plenamente os seus intentos, esta israelita de olhos encovados e cabeça rapada,
de ascendência russa, que traça um paralelo entre o holocausto nazi e o
holocausto palestiniano e para quem a paz entre as nações só será possível
quando todos os pesadelos forem expostos à luz do dia. Foi isso que ela fez,
arrasando os nervos de uma assistência que nunca soube muito bem como reagir à
violência do impacte, mas que, subjugada por uma espécie de hipnose, se manteve
imobilizada diante da torturadora. "Aquele que foi torturado tende a
tornar-se no torturador" constitui, aliás, outra das máximas defendidas
por Meira Asher.
Tudo se conjugou
para tornar a noite de sábado do Ritmos/Festas do Mundo numa ocasião especial
e, provavelmente, dolorosa. A começar pelo aspeto cénico do palco. Ao invés da
habitual parafernália de instrumentos étnicos, era todo um arsenal de máquinas,
ecrãs de vídeo, percussões eletrónicas e computadores que se exibia aos olhos
curiosos, e um pouco assustados, da assistência.
Ainda antes do
ritual ter início, um som eletrónico incomodativo saía das colunas para criar
uma atmosfera que tornava cada vez mais ténues as esperanças daqueles que
acreditavam ainda ser possível haver festa. Mas quando Meira Asher e o seu
grupo de terroristas sónicos puseram os seus dispositivos do inferno a
funcionar, todas estas esperanças caíram por terra. Sobre vagas industriais de
eletrónica onde a melodia e o menor "groove" rítmico nunca passaram
de utopia, Meira Asher gritava e gesticulava como uma possessa. Luzes
estroboscópicas eram apontadas ao público, enquanto os fumos e, num dos temas,
fogo real, ajudavam a intimidar, na celebração de uma cerimónia de shamãs sem
fé que transportam para o próximo milénio a estética apocalíptica dos
Einstuerzende Neubaten e dos atuais Faust. Dois ecrãs de vídeo exibiam imagens
não menos dantescas, de experiências ou operações cirúrgicas em corpos humanos,
chagas, ferimentos e sofrimentos sortidos, tortura e caos, alternando com sinais
geométricos de carácter mágico. Sobre tudo isto, uma frase, repetida do princípio
ao fim num placard eletrónico instalado em frente a uma das mesas de samplers e
sintetizadores, acentuava ainda mais a tónica do medo: "Birkenau, aqui e
agora". O Palácio de Cristal tornava-se no campo minado de um perigoso
jogo de memórias e ambiguidades. O mundo inteiro é um campo de concentração do
qual é impossível escapar.
Sucederam-se os
samples onde se armazenavam as dores de vítimas reais e estilhaços de música
étnica afogada numa orgia de loucura. Durante a interpretação de "Weekend
away break", um dos temas mais violentos de "Spears into Hooks"
- a descrição do campo da morte de Birkenau como uma estância de férias, ao som
de uma valsa de Strauss e das canções de Marlene Dietrich - dançou a dança do
mal.
O "espetáculo"
que Meira Asher apresentou no Ritmos/Festas do Mundo, excedeu as expectativas
dos que já conheciam o álbum e defraudou as dos incautos. Quem procurava a
festa - que também não chegou a acontecer na primeira parte, com a atuação dos
Istanbul Oriental Ensemble a pautar-se por alguma monotonia - saiu machucado
debaixo dos gritos de "Morram!" Morram! Morram!", que Meira
escarrou em "The Flood", "o dilúvio", outro dos temas de
audição dolorosa de "Spears into Hooks". Mal terminou o exorcismo, a
chuva começou a cair...
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