cultura QUINTA-FEIRA, 22 ABRIL 1999
Lounge
Lizards dão concerto memorável no Centro Cultural de Belém, em Lisboa
Celebração dos lagartos
Foi a celebração da grande música
e de um grande grupo, parafraseando o poema de Jim Morrison, "Celebration
of the lizard". John Lurie e os seus Lounge Lizards, como o vocalista-xamã
dos Doors, foram possuídos pelos espíritos. Num dos concertos do ano.
Há muito que não se assistia em
Portugal a música do quilate da que John Lurie e os Lounge Lizards apresentaram
na noite de terça-feira no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém (CCB).
John Lurie tinha razão na entrevista que deu ao PÚBLICO (no suplemento Artes
& Ócios da passada sexta-feira). Ele e o seu grupo podem, de facto, fazer
tudo. E fizeram. De forma superlativa.
Os nove elementos que estiveram em
palco não são grandes executantes, no sentido técnico do termo. São, antes,
grandes músicos que se deixaram possuir pelo espírito da música. Ao longo de
duas horas e meia, passou pelo CCB a própria dinâmica da vida, os seus
paradoxos e incertezas. É isso que John Lurie imprime às suas composições e faz
respirar nos músicos que o rodeiam: uma girândola desconcertante de
referenciais estéticos que, a cada instante, colidem com os lugares-comuns de
géneros como o jazz, o rock, a "world music" e a música de câmara.
Curiosamente, a noite começou mal,
fazendo prever o pior. Com um som empastelado e os músicos tensos a esconderem
o que estava para vir. Desagradado, Lurie passeou em frente deles, levantando
os braços, a pedir que abrissem os espíritos e o som. E, de súbito, fez-se luz:
tudo começou a bater certo. A celebração subiu sem parar, até atingir o céu.
Cada músico entregou-se ao som do coletivo, numa cascata de emoções. Foi jazz
mas também foi rock. E rituais africanos. E cadências latinas transfiguradas
pelo "free". É possível, claro, atribuir uma memória a esta música
que aflorou o eixo europeu de orquestras como a de Mike Westbrook e Mike Gibbs
ou grupos como os Nucleus ou Achim Reichel. Mas os Lounge Lizards não ficam
muito tempo parados na mesma estação, retendo apenas o essencial.
Uníssonos poderosos chegaram perto
da histeria de uma liberdade assumida até às últimas consequências. Uma máquina
de prazer que carburou em explosões sucessivas do trompetista Steven Bernstein
e do saxofonista-tenor Michael Blake. Evan Lurie, irmão mais novo do líder da
banda, rubricou ao piano um solo prodigioso onde couberam o romantismo, o
minimalismo, traços de Keith Tippett e segredos que apenas ele conhece. Tony
Scherr solou como se respirasse no seu baixo elétrico, transformado num corpo
de mulher. Mauro Refosco, o percussionista brasileiro, coloriu com sonoridades
afro uma música que soltou amarras e queimou calorias.
Num dos temas, Doug Wiselman fez a
sua guitarra soar como uma "sitar" criando um raga de jazz
psicadélico. Lurie foi o maestro. O sábio. O louco. As frases melódicas que fez
nascer dos seus saxes alto e soprano escaparam a todas as previsões e apostas.
Clássico de uma forma satírica ou humilde como um tocador de rua, Lurie
demonstrou a sua veia de "entertainer", com um sentido de humor que
fez explodir de riso a assistência. Ironizou sobre os hotéis em que os lençóis
da cama estão tão apertados que tornam impossível a quem se deita mexer os pés
ou sobre o pânico das hospedeiras de voo quando os passageiros se recusam a
comer os pacotes de amendoins.
E insistiu com as pessoas instaladas
nos camarotes mais altos do auditório para se atirarem lá de cima: "É um
espetáculo tão belo, como as folhas das árvores a caírem no Outono, só que em vez
de folhas, são pessoas!...".
O público não teve outro remédio:
rendeu-se. Dois "encores" em que os níveis de adrenalina aumentaram
ainda mais culminando num dos momentos inesquecíveis da noite: um
"blues" ensanguentado por solos arrancados do fundo da alma pelos
três sopradores - Bernstein, Blake e John Lurie. Ficou um silêncio comovido e a
sensação de ter acontecido algo de único nos palcos portugueses. John Lurie
aproximou-se do microfone para murmurar simplesmente: "that's it!".
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