23/12/2016

Baile no bordel [Pascal Comelade]

Músicas

PASCAL COMELADE E A BEL CANTO ORQUESTRA EM COIMBRA E LISBOA

BAILE NO BORDEL

UM QUARTO VAZIO, envolvido em sombras e humidade. A um canto, como um animal acossado, um piano de cauda roído pelo caruncho rumina memórias de feitos gloriosos. Visões do século passado, salões feericamente iluminados por lustres onde silhuetas sem rosto dançam a valsa. Lá fora chove. Um vulto entra na sala e senta-se ao piano que encolhe, ronronando, até se transformar num brinquedo. Nessa altura liberta-se do teclado uma melodia. Um tango ou uma valsa. Talvez mesmo as notas desencontradas de uma canção dos Faust.
            É a primeira das primeiras melodias. O útero de todos os folclores. O mágico possuidor do poder de acordar em nós um Inconsciente que julgávamos definitivamente acorrentado, chama-se Pascal Comelade e já atuou, há alguns anos, a solo, em Portugal. Toca instrumentos de brinquedo. Não porque se trate de uma brincadeira mas porque a sua música tem a mesma inocência e a mesma crueldade que apenas as crianças conhecem e praticam. Um dos álbuns de Pascal Comelade, cuja música ele próprio define como "um bordel", chama-se "El Primitivismo" e define com clareza esse magma de impressões e emoções que existem antes do raciocínio as arrumar nos ficheiros da filosofia e as enfeitar com o verniz da estética.
            Pascal Comelade é francês de nascimento mas viveu grande parte da sua vida em Barcelona, na Catalunha. Ainda nos anos 70 conhece Richard Pinhas, dos Heldon, e Victor Nubla, dos Macromassa, compositores de música eletrónica, não admirando que o seu primeiro trabalho discográfico, "Fluence", se inclua nesta área musical. Curiosamente, Richard Pinhas participa como convidado num álbum mais recente de Comelade, "Musiques pour Films, Vol.2", num tema, "Back to Schizo", que ressuscita o minimalismo "frippiano" dos Heldon.
            Já nos anos 80, depois de um contacto fugaz com grupos comprometidos com o movimento RIO ("Rock in Opposition"), como os Henry Cow, forma os Fall of Saigon e, mais tarde, a Bel Canto Orquestra, formação errática que permaneceu até aos dias de hoje. O seu gosto pela literatura surrealista e pelo romance policial leva-o a aderir a associações como L'Association des Amis de Alfred Jarry, L'Association des Amis d'Arsène Lupin ou a Societé Sherlock-Holmes. "Détail Monochrome" e "Bel Canto" fazem a transição para uma música deslocada do tempo que evoca a banda-desenhada de Tardi, algum do cinema de Fellini, uma sessão de espiritismo e um "haiku" japonês.
            Instala-se em Vernet-les-Bains, lugar carregado da nostalgia de uma estância do século passado e ao qual dedica uma canção. Escreve uma "Enciclopedia Logicofobista de la Musica Catalana", um arquivo da vida e da obra das personalidades mais marginais da cultura catalã. Discos como "El Primitivismo" e "Danses et Chants de Syldavie" ilustram o universo, aparentemente anacrónico, que Pascal Comelade cultiva com a insistência dum maníaco, composto de danças e melodias emanados do cérebro de um fumador de ópio.
            Em Tóquio, faz os arranjos da "Opera dos Quatro Vinténs", de Kurt Weill. O Oriente continua a inspirá-lo: edita o álbum "Haikus de Piano", coleção de miniaturas de piano que incluem versões de canções pop esquizofrénica de Robert Wyatt e dos Faust lado a lado com curtas-metragens sonoras de Nino Rotta. "Traffic d'Abstractions" e o magistral "El Cabaret Galactic" refinam o lado retro e humorista da sua música, possuída por lugares e imagens tão belos e desfasados do gosto moderno como os títulos das canções: "The Lolobrigida fox-trot", "Danseur de tango descendant un escalier", "Le dompteur de mouches de Figueres", "Dali's mustache with gitano's chaussure" ou "Chanson triste pour ventriloque aphone", culminando no verdadeiro manifesto que é "Little melodie plaintive empreinte d'un grand charme nostalgique".
            Músicos como Jaki Liebezeit, dos Can, que chega a fazer parte da Bel Canto Orquestra, e Polly Jean Harvey, expressam publicamente a sua admiração pelo francês. A autora de "Is this Desire?" participa mesmo em duas canções de "L'Argot du Bruit", editado o ano passado: "Love too soon" e "Green eyes". Toca ao vivo com os Faust e com o grupo de pós-rock francês, Ulan Bator, "The sad skinhead", um tema de "Faust IV", daquele grupo germânico. Além de "L'Argot du Bruit", Pascal Comelade edita nos últimos anos os álbuns "Ragazzin' the Blues", "Musiques pour Films, Vol.2" e "Zumzum-Ka", escrito para uma coreografia de um grupo catalão.
            A formação da Bel Canto Orquestra que acompanha Pascal Comelade (piano e brinquedos) a Portugal é constituída por Gerard Cheniere (bandolim e guitarras), Patrick Felices (baixo), Philippe Dourou (percussão) e Jakob Draminsky (saxofone e brinquedos, atua amanhã em duo com Nuno Rebelo, na Galeria Zé dos Bois).

PASCAL COMELADE
Coimbra, Teatro Gil Vicente, dia 24, às 22h30
Lisboa, Grande Auditório do CCB, dia 25, às 21h30

sexta-feira, 18 Junho 1999

ARTES & ÓCIOS

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