SEXTA-FEIRA, 25 JUNHO 1999 cultura
Sons do Mediterrâneo no Porto
Holocausto na música do mundo
MEIRA
ASHER paira como uma ave de rapina sobre a programação do festival
Ritmos-Festas do Mundo, cuja sexta edição, dedicada aos sons do Mediterrâneo,
tem hoje início no Palácio de Cristal, no Porto. A cantora israelita de cabeça
rapada lança-nos na cara a maldição e o horror da condição humana. Depois de um
primeiro álbum, “Dissected”, em que a música de raiz étnica funcionava ainda
como pretexto para suavizar uma visão em que a fúria e a denúncia eram já a
pedra de toque, em torno de temáticas incómodas (e, até então, virgens, no
universo das chamadas “músicas do mundo”) como a sida e a apropriação
terrorista de textos da Bíblia, Meira Asher lançou-ne no abismo. A sua segunda
obra, intitulada “Spear into Hooks”, é um pesadelo de audição urgente e,
provavelmente, o melhor disco deste ano.
Sobre a temática do Holocausto a
cantora ergue uma catedral de medo cercada pela violência sonora da música
industrial e pelos traumas da guerra. São utilizados samples onde ficaram
armazenadas a agonia, a tortura e uma ironia que fere com a crueldade gelada de
um bisturi. Meira grita, geme e invectiva (Diamanda Galas, ao pé dela, é uma
menina de coro...) sobre os estertores de vozes reais de mulheres e crianças
atingidas por projéteis. Textos do Génesis misturam-se com a descrição de
assassínios. Num dos temas, o campo de concentração nazi de Birkenau é descrito
como um campo de férias cujos habitantes são convidados a tomar um banho de
vapores perfumados. À medida que o inferno sobe de tom ouve-se por cima uma
valsa de Strauss e um disco antigo de Marlene Dietrich. Outro tema, inspirado
no poema "Se questo é un uomo", de Primo Levi, descreve a doença da
alma dos que sobreviveram: "Lembramo-nos de tudo o que aconteceu/que agora
encaramos como se nunca tivesse acontecido/não gravaremos nada nos nossos
corações/quando chegarmos a casa e já estivermos longe/quando pudermos
descansar e nos erguermos de novo/não será dita aos nossos filhos uma palavra
do que vivemos/deste modo perderemos a nossa essência/e a doença tomará conta
de nós da cabeça aos pés/E a nossa descendência afastar-se-á de nós/cada vez
mais, para todo o sempre". Depois de sermos feridos pela música de Meira
Asher o Verão parecerá mais escuro e a realidade chorará. Meira Asher apresenta
amanhã o seu ritual de exorcismo, em voz, electrónica e percussão, acompanhada
por Daniel Baruch, em electrónica, e Jackie Shemesh, nos efeitos de luz. A
seguir à actuação dos Istanbul Oriental Ensemble, marcada para as 22h30.
Mas hoje ainda vai ser possível
respirar e dançar. Com os Barrio Chino, de França, e Daniele Sepe, de Itália.
Nos Barrio Chino, combinam-se as tradições ibérica, grega, italiana e árabe.
Uma visão mediterrânica que se estende de Atenas a Barcelona, de Alexandria a
Casablanca. Daniele Sepe é um cantor/autor que percorre o imaginário musical da
região de Nápoles mas onde são envergadas outras máscaras, de Kurt Weill, do
raga, do canto medieval, do tecno folk e do jazz. Não é de desdenhar o sentido
de humor que levou Daniele a intititular a banda que o acompanha, Art Ensemble
of Soccavo, repositório de heranças musicais napolitanas que o cantor descreve
como "uma caixa de refugo musical".
No sábado, além de Meira Asher,
actuam os turcos Istanbul Oriental Ensemble, naquela que será a sua segunda
visita a Portugal, depois de terem actuado no ano passado na Expo. Trata-se de
uma das mais importantes formações de música árabe da actualidade, com a
liderança do percussionista Burhan Öçal. Sons ciganos, com proveniência de
Istambul e da Trácia dos séculos XVIII e XIX, soltam-se em arranjos e
improvisações na construção da banda sonora de mil e uma noites passadas no
ponto nevrálgico onde a Ásia e a Europa se encontram. A ouvir, como preparação
para o concerto, os álbuns "Gypsy Rum" e "Sultan's Secret
Door".
Salamat, da Núbia, Egipto, e Esma
Redzepova, da Macedónia, encerram no domingo o festival Sons/Festas do Mundo. O
grupo Salamat conta na sua formação com um extraordinário percussionista,
Mahmoud Fadl, autor de álbuns impossíveis de ignorar, como "Drummers of
the Nile" e "Love Letters from King Tut-Ank-Amen". Através da
união dos padrões melódicos tradicionais com os ritmos urbanos nascidos no
Cairo, a música dos Salamat inscreve-se na mesma linha de Ali Hassan Kuban,
constituindo ocasião soberana para os corpos se entregarem à hipnose da dança.
A herança cigana regressa no
espectáculo de fecho, com a cantora Esma Redzepova e o seu grupo, oriundos da
Macedónia. Mesmo neste caso, apesar dos compassos se escreverem com contas mais
complicadas, o apelo do ritmo não deixará de se fazer sentir.
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