cultura DOMINGO, 11
JULHO 1999
Festival
Sete Sóis Sete Luas, em Pontedera
Amélia Muge
derrota frieza do público
Pontedera
assistiu na noite de sexta-feira ao terceiro espetáculo de música portuguesa em
terras italianas, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete Luas. Depois dos Realejo
e das Danças Ocultas, foi a vez de Amélia Muge encher a noite toscana com os
sons, por vezes difíceis, do seu álbum mais recente, "Taco a Taco".
Uma entorse num pé e a sisudez de um público que parecia formado por estátuas
constituíram os principais obstáculos que a cantora ultrapassou com a força da
sua voz e o carisma da sua presença.
O público
italiano, pelo menos o de Pontedera, pequena cidade situada em plena região
Toscânia, é assim: quando gosta, bate palmas, mas mais nada. Se uma canção lhe
agrada especialmente bate durante mais tempo. É tudo. Nem um grito, um assobio,
a mais pequena agitação na cadeira, "niente". A polidez e o recato
absolutos. O cenário para o concerto de Amélia Muge estava montado no jardim da
villa Malaspina, em Montecastello, o mesmo local onde há dois anos atuou Teresa
Salgueiro, acompanhada pela guitarra de António Chainho. A paisagem parece
decalcada de um filme de Ermano Olmi, feita no silêncio das estrelas e dos
ciprestes. Amélia Muge veio perturbar esta serenidade. Mesmo não havendo
"paredes para fazer tremer", como ela gosta que aconteça nas suas
atuações.
Antes do
concerto, o azar bateu-lhe à porta. Uma queda pelas escadas abaixo do hotel
teve como consequência uma entorse num pé. Mas mesmo o pé afetado não impediu a
cantora portuguesa de passar o exame com uma perna às costas. Porque de um
exame pareceu tratar-se, diante daquela série de figuras rigidamente postadas
em frente ao palco mas que, no final, aprovaram com distinção.
Amélia
entregou-se, como sempre fez, de alma e coração. Mesmo fatigada, mesmo com o pé
a doer, mesmo com o som e as luzes sem serem as melhores, conseguiu que a sua
música se insinuasse, primeiro nos ouvidos, depois no coração, de uma plateia
empedernida.
"O
mal-lavado", "Cantigas a Rosalia" e "A roupa do
marinheiro" criaram ambiente mas não derreteram o gelo. Ambiente de
estranheza que o público italiano não soube muito bem como lidar antes de
chegar à conclusão de que estava perante uma voz e uma música diferentes do que
é costume associar-se à música portuguesa. "O tolinho da aldeia"
reforçou esta aparente incompatibilidade entre quem esperava a facilidade e
quem ofereceu a coerência e a intransigência em pactuar com qualquer espécie de
truques.
Portunhol
fluente
Em "Taco a
Taco" a cantora procurou explicar, num portunhol fluente, o teor da
canção, acabando, no entanto, por encolher os ombros e reconhecer que mesmo os
portugueses não percebem do que é que se trata. Até que chegou o momento mágico
da noite. A senha foi o nome de Fernando Pessoa, autor da letra de
"Nevoeiro", mas a magia aconteceu com a soberba interpretação vocal,
plena de emotividade, como se a hora do poema verdadeiramente chegasse naquele
instante. O público não teve outro remédio senão entregar-se, aplaudindo com uma
salva de palmas interminável.
Nesta altura foi
possível perceber que é pela duração do aplauso e não por qualquer outro tipo
de manifestação emotiva que se deve aferir a aprovação, ou não, do público de
Pontedera. Se aplaude muito tempo é porque gosta. Se permanece imóvel como uma
vedação de estacas, o melhor a fazer é arrumar as malas. No caso de Amélia Muge
pode dizer-se que, segunda esta bitola, a assistência entrou em delírio, já que
aqui e ali se chegaram a ouvir "bravos" (mais sussurrados do que
gritados...) de incitamento.
A partir de
"Nevoeiro" tudo se tornou mais fácil. Em "Cantiga de
segada" os italianos tiveram mesmo direito a um momento de identificação,
uma vez que a polifonia vocal criada pelas vozes de José Manuel David e Amélia
Muge navega nas mesmas correntes mediterrânicas que passam pela Córsega, ou ainda
mais perto, pela Sardenha.
José Manuel David
foi, de resto, o motor instrumental de todo o concerto, passando da
gaita-de-foles para a flauta, do kissange para o piano e, no último tema,
"A saia da Carolina" – entre a música antiga, o folclore português e
ressonâncias árabes –, para uma cromorna da Renascença. José Martins e João
Lobo rubricaram um interessante dueto de percussões, em "Moby Dick",
e Rui Pereira, "Dudas", soltou-se em "A saia da carolina",
num dos seus idiomas preferidos, o jazz, neste caso executado num alaúde árabe,
solando com a alma e os dedos de um Rabih Abou-Khalil. Yuri Daniel foi o esteio
seguro, no contrabaixo.
Voltaram todos ao
palco, apesar de alguma hesitação (a reação de Amélia Muge às palmas finais,
embora mantendo-se a compostura de sempre, foi perguntar se isso significava um
pedido de encore...). O público queria mesmo mais. Amélia acedeu, oferecendo-se
num exercício intimista, interpretando a solo "Se não tenho outra
voz", sobre um poema de José Saramago, terminando, já com todos os músicos
de novo em palco, com "A avó Emília". Foi o cabo dos trabalhos para
explicar a palavra "avó" ("nonna", em italiano). Uma luta
taco a taco contra a distância e o comedimento da qual a música portuguesa e,
em particular Amélia Muge, saíram vencedores.
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