12/12/2016

Circo dos três Jeans desceu à cidade [Festival Intercéltico do Porto]

TERÇA-FEIRA, 30 MARÇO 1999 cultura

Xosé Manuel Budiño e Cathy Jordan salvam o Intercéltico do Porto

Circo dos três Jeans desceu à cidade

Feito o balanço de mais um Intercéltico, ficou a sensação de o festival estar a atravessar uma crise de crescimento. Ao sucesso estrondoso em termos de afluência de público correspondeu alguma desilusão no plano artístico. Um Xosé Manuel Budiño "superstar" e a classe pura dos Dervish constituíram a mais-valia de um fim-de-semana que no domingo terminou em festa com os três Jeans do Tri Yann. Festa de circo mas festa, para todos os efeitos.

Depois do massacre proporcionado pelos espanhóis Celtas Cortos, no dia de abertura, o Festival Intercéltico do Porto salvou a face no sábado e domingo, com concertos em que a qualidade e o entretenimento estiveram presentes. Sábado, com o Coliseu do Porto completamente lotado, o público presenciou a arte magistral de Xosé Manuel Budiño na gaita-de-foles, quer na galega quer nas "uillean pipes" irlandesas. Budiño foi um dos heróis do festival, provando que o folk rock pode ser uma música de eleição onde as raízes tradicionais e a inovação não têm necessariamente de andar de costas voltadas. Como os Celtas Cortos, o grupo de Budiño utiliza bateria e instrumentação eletrificada, mas onde os espanhóis se afundaram numa linguagem pimba, os galegos souberam tirar partido da energia extra oferecida pela eletrificação. Uns têm, outros não, como diz o anúncio...
Budiño, para além de uma técnica prodigiosa, é um criador. Com ele tanto a gaita galega como as "uillean pipes" soam como uma surpresa constante, através de soluções rítmicas e harmónicas que parecem, a cada momento, contradizer os cânones daqueles instrumentos. Budiño fintou o compasso, brincou com os tempos, espremeu, até os esvaziar, os foles da gaita, obrigando-a a chorar, a pedir clemência, como uma fera domesticada que vem comer à mão. Depois, Budiño, como Carlos Nuñez, cultiva a pose de estrela. A meio de um solo complicado, teve o desplante de sorrir para a câmara do fotógrafo, ciente do seu dom. Quando avançou para a boca do palco, num delírio de bordões, fazendo a sua gaita cantar com a intensidade de um sol, foi a Galiza inteira que se perfilou na pose hierática do gaiteiro, emblema de uma região orgulhosa da sua cultura e convicta da sua diferença.
Mas houve quem, oriundo de paragens mais a Leste, estivesse à sua altura. Jacky Mollard, o bretão que antes já atuara no Intercéltico integrado nos Gwerz, fez, como se costuma dizer, miséria, no seu violino. Em grande forma, improvisando nos limites da folk e do jazz, Mollard evidenciou um notável apuro de forma, aceitando sem reticências cada desafio de Budiño. Os duetos (muitos deles em uníssonos que não perdoam o mínimo deslize de execução) que ambos mantiveram constituíram dos momentos mais altos deste Intercéltico.
Mercedes Peon, a cantora também convidada, mostrou pulmão e corpo vocal mas pouca subtileza, pouco mais fazendo do que colocar ainda mais energia numa música que terá deixado a assistência sem fôlego.
Aguardados com imensa expetativa, os Dervish surgiram no Coliseu como uma das melhores bandas irlandesas da atualidade. Não fizeram esquecer a sua atuação, neste mesmo festival, em 1994.
Volvidos cinco anos, tornaram-se uns senhores, conscientes da sua qualidade e do seu estatuto. O que há cinco anos foi entrega e entusiasmo sem limites, ganhou agora o verniz do classicismo e do profissionalismo milimetricamente gerido. Não houve uma falha, os jigs e reels da praxe correram com a agulha do conta-quilómetros no limite, as atmosferas de extroversão e de intimismo, encadearam-se como uma história mil vezes relida e contada. Mas a espontaneidade já não é a mesma, ainda que a palavra que melhor define a fase presente dos Dervish seja só uma: classe. O som não ajudou, com uma equalização que nivelou em demasia os instrumentos e à qual faltou impacto.
Mas a lenda não se apagou. Ontem, como hoje, a pairar numa esfera mais elevada, na qual todas estas considerações não se aplicam, afirmou-se outra intérprete de exceção, Cathy Jordan, a cantora do grupo. Cathy encheu com a sua voz e a sua presença o Coliseu. A música passou através dela como o cântico de um anjo. Os braços e as mãos, em danças que só o corpo entende, os ritmos que desenhou no "bodhran" foram escadarias para o céu. Há desafios e ironia na sua voz, sombras e estrelas, bruxas e virgens a cantar. Umas vezes de uma dureza azul, outras com a transparência de um véu de noiva, a voz de Cathy Jordan caminhou e caminhará na direcção de um destino, antes dela, aberto por Dolores Keane e Triona Ní Dhomnaill, suas mães espirituais. Ficará para sempre inscrita nos registos dourados do Intercéltico a vocalização "a capella" com que Cathy iluminou o Coliseu, já no período de "encores".

Grande farra

E ao terceiro dia, o circo desceu à cidade. Com o Coliseu inteiramente à sua disposição, com um concerto único de fecho do festival, os bretões Tri Yann revelaram-se uma troupe de "palhaços" de alto nível. Envergando "kilts", fatiotas coloridas e outros adereços dignos de um espetáculo do circo Cardinalli, os Tri Yann decidiram esperar pela data do seu 30º aniversário com um espectáculo onde cabe um pouco de tudo: rock celta com molho Stivell, vocalizações tradicionais de canto e resposta, apontamentos de música medieval, marchas e marchinhas e baladas trovadorescas dos anos 60. A dirigir o número estiveram os três velhotes sobreviventes da formação original dos Tri Yann, os três Jeans, Jean Chocun, Jean-Paul Corbineau e Jean-Louis Jossic, uns bacanos, enfiados em vestimentas ridículas a despejar uma música sem rei nem roque. Jossic foi o homem-espetáculo de serviço. Saltou, fez rodar o seu "kilt" escocês, dançou o can-can, a dada altura integrou-se num cordão de público, marchando pela sala, já com o Coliseu completamente rendido ao bacanal. No meio de tudo isto, falharam-se notas, entrou-se fora de tempo, a gaita-de-foles afinou e desafinou como lhe apeteceu, enfim, um forrobodó que o público aceitou sem preconceitos, aderindo por completo à farra e transformando o fecho do Intercéltico na festa apetecida.
Terminados os festejos, acalmados os ânimos, houve quem rumasse até ao café-concerto do Rivoli para escutar a música em saldo dos Magna Carta. A voz e a guitarra de Chris Simpson ainda se reconhecem mas o resto não passa de um exercício de nostalgia que nada tem a ver com os feitos gloriosos do grupo nos anos 70. Chris fartou-se de pedir atenção, embirrou com os que preferiram ficar no bar a beber copos, mas do que é que se está à espera quando os músicos tocam ao mesmo tempo que se está a jantar? Não é porém verdade que os jornalistas tenham desprezado sempre os Magna Carta e dito, como Chris Simpson se queixou, que "Magna Carta is shit!".
Uma palavra final para a óptima organização da MC – Mundo da Canção, e outra, de agradecimento, para os cabos-varanda Delfim Mendes e Mário Bazan, o mecânico Marco Jerónimo, o canalizador António Teixeira e a empregada de limpeza Marília Santos, cujos nomes a Culturporto teve o cuidado de incluir na extensa ficha técnica do programa do festival.

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