02/10/2008

O oiro dos alquimistas [Obradoiro]

Pop Rock

13 NOVEMBRO 1991

O OIRO DOS ALQUIMISTAS

Caiu do céu. Do alto, do Norte. Da Galiza verde de oceano e sol onde aportam os peregrinos do sonho: Obradoiro obra de oiro. Obra de amor. À terra, à música e aos seus instrumentos. Ao povo galego, à sua cultura e tradições, aos seus gestos e modos de ser. Na forma de uma caixa com discos, imagens e lições: “Instrumentos Musicais Populares Galegos”, obra fascinante que traça o perfil global da música e dos instrumentos tradicionais galegos. Um exemplo a seguir.

A obra em questão é fruto do trabalho e da dedicação do Grupo Didáctico-Musical do Obradoiro, Escola de Instrumentos Populares Galegos da Universidade Popular de Vigo. Especialistas na construção de “gaitas” e sanfonas, os diversos membros do Obradoiro são, para além disso, excelentes executantes, o que lhes permite desenvolver, a vários níveis, um notável trabalho de divulgação da música galega, sem paralelo no resto da Europa. Da caixa em questão fazem parte três discos, um livro de 32 páginas reunindo informação preciosa, apresentada de forma atraente e acessível (por exemplo, o desenho e a localização de todos os tipos de gaita-de-foles actualmente existentes na Europa), e uma colecção de 20 “slides” alusivos ao fabrico dos diversos instrumentos.
Para além da importância musical propriamente dita, “Instrumentos Musicais Populares Galegos” constitui material áudio-visual didáctico de excepção. Ao prazer da audição junta-se assim o da aprendizagem. Considerando que em Portugal pouco se cuida da música e da cultura popular genuínas, sugere-se aos conselhos directivos das nossas escolas (não falamos sequer já das entidades oficiais que se deveriam preocupar e estar atentas a estas questões…) a aquisição de um exemplar.
O grupo/escola Obradoiro funciona na Universidade Popular de Vigo, instituição gratuita, de carácter aberto, dependente do sector de cultura do concelho daquela cidade. Entre os seus objectivos contam-se a formação de novos artesãos, visando um constante aperfeiçoamento das técnicas de fabrico dos instrumentos tradicionais, bem como a investigação, recuperação e conservação dos mesmos, de modo a conseguir a permanente revitalização do património tradicional popular.

“Alborada” das gaitas

De acordo com os Obradoiro, o fenómeno cultural passa pela compreensão e actualização das raízes culturais. (Deveria ser sempre assim e em toda a parte. Infelizmente há quem pense de maneira contrária e prefira apostar nas técnicas de mumificação…) “A evolução da cultura popular, do folclore, dependem, em grande medida, das experiências actuais que, baseadas na tradição, deverão ser rejeitadas ou aceites e posteriormente incorporadas à bagagem cultural do país.”
Assim se constrói o tempo e o templo. Assim se acorda em espiral infinita o sangue e o oiro da fraternidade celta. Parte-se da terra para se chegar ao céu. Via láctea, estrela e bordão dos caminhantes, que em si próprios e no mundo demandam a obra e a coroação. Obradoiro – Obra de oiro. Centro solar da cruz, etapa derradeira e primeira do percurso alquímico. Núpcias do espírito e da alma. O cavaleiro doma a montada. Vencido o dragão, com um beijo se liberta a princesa cativa. Rosa catedral.
A banda de gaiteiros Xarabal (uma das ramificações dos Obradoiro, dirigida por um dos seus membros, Antón Corral), que integra Ricardo Portela (gaiteiro da velha geração), Wenceslau Cabezas “Polo”, Blanca Nieves Lorenzo, Xosé V. Ferreiros e Fernando Aguiar, constitui o lote de intérpretes convidados que, juntamente com os nove elementos do Obradoiro, fazem desta obra uma quase bíblia da música galega e das suas técnicas instrumentais.
No disco um, o aspecto didáctico é reforçado pelas introduções explicativas em que são referidas e exemplificadas a gama, a escala e, no caso da sanfona e da gaita-de-foles, o próprio modo de afinação dos instrumentos: o “pito” (flauta de bisel pastoril), a requinta (flauta transversal em osso ou madeira de sabugueiro) e as já citadas “gaita” e sanfona.
Da lista total de instrumentos utilizados constam ainda as percussões (tamboril, pandeiro, terranholas, bombo, conchas, charrasco), a cromorna, o “organistrum” (espécie de sanfona “gigante”, tocada por dois executantes, cuja origem se perde nas brumas da lenda e que aparece esculpida num dos pórticos da Catedral de Santiago de Compostela), o acordeão, o violoncelo, a espineta, o piano e, num par de temas, o sintetizador.
Destaque neste primeiro disco, que funciona um pouco como introdução às várias especificidades da música galega, para a grande vaga apolínea das gaitas-de-foles na “Alborada da lanzada”, apelo uníssono à alegria do corpo e ao despertar dos sentidos.

Das muiñeiras a Vivaldi

Passando ao disco dois, o neófito, já suficientemente familiarizado com as toadas e profundezas da alma musical galega, pode deliciar-se com as “muiñeiras” de Coia e Pontesampaio, com o “Fandango muradán”, ou com os originais de Xosé Romero Suaréz e Antón Corral – “A camponesa” e “Romance de Herveira”. Maravilhosa a longa “suite” “Fantasia para ‘gaita’ e piano”, manifestação mágica das imensas potencialidades deste instrumento ancestral (na Galiza, sujeito a um trabalho de constante pesquisa, na procura de novas possibilidades e afinações), mesmo, como é o caso, quando transportado para um contexto próximo da música de câmara.
Sobressaltos anímicos alternam com momentos de pacificação interior no terceiro e último disco. Aos instrumentos populares, e ao seu especial modo de fazer vibrar em nós impressões de longe e tão perto, acrescenta-se a emancipação erudita da requinta, numa gavota retirada da sonata para flauta e baixo contínuo de J. B. Loeillet, da sanfona e do “pito”, respectivamente no “affectuoso” e “allegro ma non presto” incluídas nas sonatas nº 1 e 6, de “Il Pastor Fido”, de Antonio Vivaldi.
Dança apropriada pelo diabo na vertigem rodopiante dos salões palacianos, a valsa surge, em “Lembrando” e “Carmela”, telúrica e ventosa, levando-nos consigo, nas últimas faixas de cada lado do disco, até à dignidade aprumada da banda de “gaitas” Xarabal no “Himno galego”, de Pascual Veiga, e à “Muiñeira de Freixido”, que nos agarra o espírito para nos mostrar o segredo, simples e esquecido: o abraço fraterno entre Deus, o homem e a terra. O indivíduo ligado por elos naturais ao cosmos e ao seu semelhante. Numa roda de dança, à noite, sob as estrelas, por entre espigas e cantares. Os corações num tumulto sossegado em volta da fogueira. Bailando juntos. Os pés na terra. A cabeça no céu.

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