CULTURA
QUARTA-FEIRA, 18 JUL 2001
A vida
come-se?
LULA PENA
ATUOU NO SETE SÓIS SETE LUAS
A música frágil de Lula Pena foi o prato forte de mais
uma jornada italiana do Sete Sóis Sete Luas, na mesma noite em que se serviu o
já célebre banquete do festival
Chamemos-lhe uma idiossincrasia. À música de Lula Pena, que ontem
se apresentou na Villa Malaspina, em Montecastello, em mais uma jornada italiana
do festival Sete Sóis Sete Luas. Sozinha em palco com uma guitarra, a sua
figura era a imagem perfeita da fragilidade, da exposição pública sem defesas.
A música não
ajuda a desfazer esta imagem. No limite, o híbrido de fado, bossa-nova, português
com e sem sotaque brasileiro, que a autora do álbum “Phados” molda numa ladainha
de um ritual desconhecido, é não-música, não-voz, não-guitarra, não-não, no sentido
mais prosaico dos termos.
A voz desce de
tom até se tornar pouco mais do que sopro, a guitarra tece uma malha frágil de
hesitações ou é percutida como tambor a marcar a cadência de uma alma moribunda,
as melodias enovelam-se num avesso da emoção, deixando, por sua vez, a
audiência exposta à distância e à inacessibilidade de uma forma de expressão
que se constrói como estranheza, alheia às lógicas do mundo.
Intimismo é termo
demasiado enfático para descrever o que, por momentos, mais pareceu descanso
eterno, monólogo, sombra de uma sombra emanada de uma tumba. Lula Pena tem
segredos para contar mas o lugar mais indicado para o fazer será um círculo de
amigos, a penumbra de um cubículo, um confessionário. Apesar de tudo, o público
italiano pareceu gostar, aplaudindo numa espécie de adormecimento a cerimónia
fria servida pela cantora, na mesma noite que tinha ainda reservado o já
célebre bacanal de carne montado pelo talhante e “poeta carnale”, Dario
Cecchini, que Santa Maria da Feira pôde saborear, em versão completa e
dionisíaca, no mês passado, no âmbito deste mesmo festival.
Em Itália, o
festim foi servido no terraço do Associazione Culturale Immagini, entidade organizadora
do Sete Sóis Sete Luas, com a diferença de que não foi festim nenhum. O próprio
Cecchini anunciou com pompa e voz tonitruante estar ali para celebrar a
“paixão” e a “poesia” da carne. Poesia ainda terá havido, paixão, nem tanto. O
convite não poderia ser mais belo: “Venham comer, porque esta é carne sagrada.
À noite esquartejamos anjos”... A ideia era devorar, o mais poética e
apaixonadamente possível, carne, carnuça, de anjos, de porco ou de vaca,
intercalando a mastigação ritual com momentos de música e declamação de poesia.
Mas — oh!,
desilusão —, se no que diz respeito às artes nobres, o espírito se satisfez com
a voz belíssima de Cristiana Arcari e as intervenções instrumentais (no piano,
flauta de cana baixo, uma terrina de metal posta a vibrar, na voz, modulada à maneira
“tibetana”...) de Bruno de Franceschi, bem como com as declamações de Dante,
dito com “verve” e “crueldade” pelo próprio Cecchini, já a carne propriamente
dita andou arredada do excesso e, pior ainda, dos pratos: um mero montinho vermelho
da dita, crua (saborosa), um salame, o resto para enfeitar.
A seguir, o chefe
Luís Soto Mayor, vindo expressamente de Santa Maria da Feira para fazer pecar
diariamente, pela gula, toda a comitiva do festival, apresentou uma açorda de peixe
(numa noite dedicada à carne), de acordo com sua filosofia gastronómica de
mestiçagem da cozinha portuguesa com os sabores da diáspora, e leu uma cantiga
de escárnio e maldizer de Martín Juarez. Um Quinta do Vale do Mougo de 1995, da
Bairrada, e um dourense Quinta do Portal, do mesmo ano, fizeram o que nenhuma
carne do mundo conseguiria: pôr todos de bem com o mundo.
Atuaram ainda a
Orquestra de Harmónicas de Ponte de Sor e um grupo vocal e de violas
campaniças, de Castro Verde, apresentado na ocasião pelo etnomusicólogo José Alberto
Sardinha. E comeu-se um combinado de queijo “Pecorino” com requeijão e uma
“mostarda mediterrânica”, doce e picante. “Como a vida”, comentou alguém. A
vida come-se?
Sem comentários:
Enviar um comentário