22/11/2016

O gaiteiro MIDIático [Hevia]

CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 18 JUN 2001


Crítica Música

O gaiteiro MIDIático

Hevia
Santa Maria da Feira.
Piscinas Municipais, às 22h
Recinto cheio (cerca de 2000 pessoas)

Prometeu e cumpriu. Quando da sua última estadia em Portugal, para participar como convidado na gravação do próximo álbum de Vitorino, Jose Angel Hevia garantira que a folk, a folk pura, não desaparecera por completo do seu programa musical. E que ela regressaria em breve.
Cumpriu-se cedo a promessa deste gaiteiro asturiano, na sua estreia ao vivo no nosso país, em Santa Maria da Feira, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete Luas, para uma assistência que encheu por completo o recinto aberto ao lado das piscinas municipais.
Antes tivera lugar no castelo um banquete medieval. Um festim pedia outro. Folk doce, sem corantes nem conservantes, foi sobremesa delicada, um figo engolido à pressa para quem queria sobretudo encher a pança.
Aconteceu mais ou menos a meio de um concerto que primou pela vertente espetacular e pelo imediatismo das batidas eletrónicas “meia bola e força”. Hevia, o gaiteiro que vende milhões e choca os puristas com a sua gaita-de-foles (?) MIDI, mandou baixar as luzes, chamou para o seu lado apenas a irmã, a percussionista Maria Jose Hevia e os dois juntos lavraram aquele que terá sido o momento mais alto da noite. Ele a tocar a verdadeira gaita asturiana com sensibilidade e virtuosismo, mostrando que quem sabe não esquece, ela no tambor, a revelar-se uma notável rufadora.
Nesse instante, logo de seguida atropelado pelo camião da tecnofolk, percebeu-se que Hevia está ligado a dois mundos — o da sociedade tecnológica, do hedonismo e da estilização, que lhe garante a subsistência, e o das suas origens, passadas no convívio com as escolas de gaitas tradicionais. “Al Outro Lado”, título do seu álbum mais recente, reflete essa passagem constante de um para o outro lado.
Quando ambos se encontram, se equilibram, sem mutuamente se aniquilarem, algo brilha, de facto, na música de Hevia.
Mas esse foi o momento de exceção num concerto que rendeu sobretudo o que dele se esperava: um som cheio, insuflado pelos tapetes eletrónicos, duas baterias e um baixo obeso que, por vezes, nada mais deixava ouvir senão a sua respiração asmática e, a redimi-lo, o indiscutível tecnicismo e, melhor ainda, o swing demonstrado pelo principal protagonista, Jose Angel Hevia, com acompanhamento à altura, nas percussões, da sua irmã, Maria Jose Hevia.
Hevia é hoje um valor seguro da world music europeia, mais visível em festivais como o de São Remo, onde atuou recentemente, do que em certames de música tradicional. A música sob a qual se abrigou, registada em disco em “Tierre de Nadie” e “Al Outro Lado”, está longe da ortodoxia evidenciada no álbum de estreia, “Hevia”, produzido em registo acústico em duo com a sua irmã. Essa era uma música para os amantes do folk enquanto a de hoje se destina ao consumo das multidões e a programas do tipo “Top Mais” em qualquer parte do mundo. A que o público de Santa Maria da Feira já conhecida dos clips da televisão e a que Jose Angel Hevia e o seu grupo lhe ofereceram, como fórmula ganha à partida.
Música de fusão, mesclada sobretudo com sonoridades do Norte de África, que alternou temas “calmos” (o gaiteiro manifestou a sua satisfação ao verificar que as pessoas não estavam ali só para dançar e saltar mas também eram capazes de “ouvir”), em tom “new age” céltica de pacotilha, burilada pelo “tin whistle”, e as danças, servidas com a exatidão matemática que a gaita MIDI permite. E aqui, os dois temas que a TV divulgou em quantidades industriais, “Busindre” (de “Tierra de Nadie”, interpretado duas vezes, a última das quais em encore) e “Tanzilla” (do novo de “Al Outro Lado”) revelaram-se imbatíveis.
A questão está em que, embora a razão descortine mil e uma razões para desvalorizar estes sons cuja simplicidade chega a ser desarmante, o corpo aceita-os sem reservas, entregando-se ao balanço imparável e ao sabor da alegria.
Hevia recortou da música tradicional o seu lado mais efetivo e ritual, arrancou-lhe o musgo e as ervas, mas manteve intocáveis as raízes. Será porventura esse o segredo da sua eficácia e da adesão involuntária que provoca. Os ouvidos captam o artifício mas o coração consegue distinguir nela o fogo antigo. Aceso e crepitante.

EM RESUMO

O melhor O diálogo acústico e intimista entre os irmãos Hevia

O pior O simplismo de alguns arranjos e o som demasiado amplificado do baixo elétrico

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