CULTURA
SEGUNDA-FEIRA,
18 JUN 2001
Crítica
Música
O gaiteiro MIDIático
Hevia
Santa Maria da Feira.
Piscinas Municipais, às 22h
Recinto cheio (cerca de 2000 pessoas)
Prometeu e cumpriu. Quando da sua última estadia
em Portugal, para participar como convidado na gravação do próximo álbum de
Vitorino, Jose Angel Hevia garantira que a folk, a folk pura, não desaparecera
por completo do seu programa musical. E que ela regressaria em breve.
Cumpriu-se
cedo a promessa deste gaiteiro asturiano, na sua estreia ao vivo no nosso país,
em Santa Maria da Feira, no âmbito do Festival Sete Sóis Sete Luas, para uma
assistência que encheu por completo o recinto aberto ao lado das piscinas
municipais.
Antes tivera
lugar no castelo um banquete medieval. Um festim pedia outro. Folk doce, sem corantes
nem conservantes, foi sobremesa delicada, um figo engolido à pressa para quem
queria sobretudo encher a pança.
Aconteceu
mais ou menos a meio de um concerto que primou pela vertente espetacular e pelo
imediatismo das batidas eletrónicas “meia bola e força”. Hevia, o gaiteiro que
vende milhões e choca os puristas com a sua gaita-de-foles (?) MIDI, mandou baixar
as luzes, chamou para o seu lado apenas a irmã, a percussionista Maria Jose
Hevia e os dois juntos lavraram aquele que terá sido o momento mais alto da noite.
Ele a tocar a verdadeira gaita asturiana com sensibilidade e virtuosismo,
mostrando que quem sabe não esquece, ela no tambor, a revelar-se uma notável
rufadora.
Nesse
instante, logo de seguida atropelado pelo camião da tecnofolk, percebeu-se que
Hevia está ligado a dois mundos — o da sociedade tecnológica, do hedonismo e da
estilização, que lhe garante a subsistência, e o das suas origens, passadas no
convívio com as escolas de gaitas tradicionais. “Al Outro Lado”, título do seu
álbum mais recente, reflete essa passagem constante de um para o outro lado.
Quando ambos
se encontram, se equilibram, sem mutuamente se aniquilarem, algo brilha, de
facto, na música de Hevia.
Mas esse foi
o momento de exceção num concerto que rendeu sobretudo o que dele se esperava:
um som cheio, insuflado pelos tapetes eletrónicos, duas baterias e um baixo
obeso que, por vezes, nada mais deixava ouvir senão a sua respiração asmática
e, a redimi-lo, o indiscutível tecnicismo e, melhor ainda, o swing demonstrado
pelo principal protagonista, Jose Angel Hevia, com acompanhamento à altura, nas
percussões, da sua irmã, Maria Jose Hevia.
Hevia é hoje
um valor seguro da world music europeia, mais visível em festivais como o de
São Remo, onde atuou recentemente, do que em certames de música tradicional. A
música sob a qual se abrigou, registada em disco em “Tierre de Nadie” e “Al
Outro Lado”, está longe da ortodoxia evidenciada no álbum de estreia, “Hevia”, produzido
em registo acústico em duo com a sua irmã. Essa era uma música para os amantes
do folk enquanto a de hoje se destina ao consumo das multidões e a programas do
tipo “Top Mais” em qualquer parte do mundo. A que o público de Santa Maria da
Feira já conhecida dos clips da televisão e a que Jose Angel Hevia e o seu
grupo lhe ofereceram, como fórmula ganha à partida.
Música de
fusão, mesclada sobretudo com sonoridades do Norte de África, que alternou temas
“calmos” (o gaiteiro manifestou a sua satisfação ao verificar que as pessoas
não estavam ali só para dançar e saltar mas também eram capazes de “ouvir”), em
tom “new age” céltica de pacotilha, burilada pelo “tin whistle”, e as danças,
servidas com a exatidão matemática que a gaita MIDI permite. E aqui, os dois temas
que a TV divulgou em quantidades industriais, “Busindre” (de “Tierra de Nadie”,
interpretado duas vezes, a última das quais em encore) e “Tanzilla” (do novo de
“Al Outro Lado”) revelaram-se imbatíveis.
A questão
está em que, embora a razão descortine mil e uma razões para desvalorizar estes
sons cuja simplicidade chega a ser desarmante, o corpo aceita-os sem reservas,
entregando-se ao balanço imparável e ao sabor da alegria.
Hevia
recortou da música tradicional o seu lado mais efetivo e ritual, arrancou-lhe o
musgo e as ervas, mas manteve intocáveis as raízes. Será porventura esse o
segredo da sua eficácia e da adesão involuntária que provoca. Os ouvidos captam
o artifício mas o coração consegue distinguir nela o fogo antigo. Aceso e
crepitante.
EM RESUMO
O melhor O diálogo acústico e intimista
entre os irmãos Hevia
O pior O simplismo de alguns arranjos e
o som demasiado amplificado do baixo elétrico
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