CULTURA
SÁBADO, 28
JUL 2001
Kalinka, o
mistério da voz
MÚSICAS DO
MUNDO TERMINA HOJE EM SINES
A búlgara
Kalinka Vulcheva desceu aos homens como uma dádiva do céu no arranque do
Músicas do Mundo de Sines
Sines. Primeira etapa
da terceira edição do festival Músicas do Mundo. Local: interior do castelo,
ambiente medieval, após uma cerimónia de abertura oficial que incluiu um
repasto pantagruélico. Pena a noite ter estado fria para receber a Brigada
Victor Jara e os Bal Tribal, aos quais competia pôr a música a rolar.
À Brigada Victor Jara, competente
como sempre, faltam presentemente duas coisas: um reportório novo e coragem
para experimentar algo de diferente do que fazem desde 1977, quando editaram o
álbum "Eito Fora", um dos marcos da música de raiz tradicional
portuguesa.
Em Sines, sem o violinista Manuel
Rocha, mas aumentados por um contingente de convidados composto por Jorge Reis,
no violino e saxofone soprano, António Pinto, na guitarra, Tomás Pimentel, no
fliscorne, Manuel Freire, na guitarra e na "Pedra Filosofal", e os
galegos Gaiteiros de Milidh, ouviram-se pela enésima vez a "Cana
verde", o "Bento airoso", uma "Mi morena" servida a
preceito pela voz de uma enregelada Catarina Moura, a "Chula de paus",
todo o cocktail habitual da Brigada feito do contraste entre a elegância e
maior apuro das baladas e o tom popular das danças, dos bombos e das deixas
lançadas ao público para participar. O que aconteceu, no final, com um
"Baile mandado" algarvio, ao ritmo das palmas, sob o comando do
"rapper" (foi ele que o disse...) Luís Garção. Manuel Freire foi,
porém, a estrela da companhia. Bastou-lhe cantar, uma vez mais, a canção que
Portugal inteiro conhece, "Pedra filosofal", para a plateia se
levantar num aplauso incontrolável.
Aguardada com bastante expetativa, a
orquestra bretã Bal Tribal rubricou em Sines a sua sexta atuação ao vivo, desde
que se formou, já este ano, como forma de responder às crescentes solicitações
de alguns dos festivais de folk céltica de maior nomeada, como os de Moaña e
Lorient, suscitadas pela excelência do álbum "Deliou", de Patrick
Molard, editado o ano passado. O que significa que grande parte dos 12 músicos
deste projeto presentes no Músicas do Mundo de Sines participaram na gravação
desse álbum.
Para já, provou-se que o disco é uma
coisa e a sua transposição para um espetáculo ao vivo, outra É uma música de
"composição", a dos Bal Tribal, a necessitar de limar arestas e,
principalmente, de cortes na duração, excessiva, de alguns temas. O som também
não ajudou, daí que de entre o aglomerado de um naipe de cordas, percussões
indianas, guitarra, baixo, bateria, metais, violino e gaita-de-foles, se
destacasse, de forma fulgurante, a cantora búlgara Kalinka Vulcheva, solista do
"Mistério das Vozes Búlgaras" e da Orquestra Nacional de Sófia, tão
deslumbrante em Sines como no álbum "Deliou".
Dádiva do céu
Patrick Molard e
Jacky Molard, os dois irmãos impulsionadores dos Bal Tribal, são razoáveis
instrumentistas, sem dúvida. Jacky é um violinista que, apesar da ausência
completa de "swing", compensa essa falta de alma com uma razoável
capacidade para lidar com a complicação dos compassos do "an dro"
bertão ou do "horo" búlgaro, enquanto o seu mano Patrick se aplica
com alguma "verve" na gaita peso-pesada como é a escocesa e nas
"uillean pipes" irlandesas, a Fórmula Um dos foles.
Mas Kalinka Vulcheva é algo mais.
Sempre que abre a boca é Deus que ouvimos cantar. Eis o que faz a diferença
entre a Música e a música. Esta sai melhor ou pior, consoante as melhores ou
piores capacidades técnicas dos seus intérpretes. Aquela é diferente. Vem de
outro lugar, não se aprende, desce aos homens como uma dádiva do céu. Kalinka
Vulcheva cantou dois dos temas de "Deliou", um deles em dueto com as "uillean
pipes", excessivamente amplificadas e em esforço para manter a compostura
na difícil arte que é saber tocá-las devagar, de Patrick Molard. Deu vontade de
chorar, de engolir a luz, de beijar a voz. Kalinka Vulcheva foi praticamente
tudo na primeira das três noites do Músicas do Mundo.
O resto fez figura de acessório, de
curiosidade exótica: o dueto de tablas e bateria, o desempenho, tão obsessivo
quanto assustador, de Patrick Molard, num excerto de música "pibroch"
(a mais nobre escrita para a gaita-de-foles escocesa) nas "Highland
pipes", a contar a história de um gaiteiro escocês, Patrick-qualquer-coisa
que, para vingar o seu irmão, incendiou uma povoação inteira massacrando os
seus habitantes. Felizmente para Sines, o outro Patrick, Molard, estava bem
disposto e não deu mostras de querer vingar o seu irmão Jacky...
Só no final, depois de uma
introdução "free", a música tradicional da Bretanha deu um ar da sua
graça, num "Dans plinn" que pôs enfim a dialogar a bombarda e o
"biniou-kohz" (gaita-de-foles bretã). Mas teve pouco de
"tribal", e muito menos de "bal", a música desta formação
herdeira, em formato erudito, de grupos como Gwerz, Archetype ou Den, qualquer
deles armado de um ou outro dos irmãos Molard. Quando terminaram, já a maior
parte das cadeiras se encontrava vazia...
O festival Músicas do Mundo, depois
dos concertos de ontem com Carmen Linares e Taraf de Haidouks, termina esta
noite com atuações de Andrea Marquee, David Murray com The World Saxophone
Quartet e Black Uhuru com Sly & Robbie.
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