CULTURA
TERÇA-FEIRA, 4 JUN 2002
Crítica Música
Marlui
Miranda, uma leoa na Amazónia
Marlui Miranda
Festival
Cantigas do Maio
Seixal,
Fábrica Mundet
Dia 1, às
22h
Sala
esgotada
Não
existem leões na Amazónia? Existem leoas, pelo menos uma, Marlui Miranda, que
fechou com chave de ouro a 13ª edição do festival Cantigas do Maio, que nos
últimos dois fins-de-semana decorreu no Seixal. Com um espetáculo dividido em
três partes, imbuído da música e dos rituais dos índios da Amazónia, a cantora brasileira
apresentou-se descalça, pintada como uma índia, a juba ruiva de fera a
acentuar-lhe o rosto.
Lado selvagem que se mostrou sobretudo na primeira parte,
preenchida pela apresentação de “Ihu” (“todos os sons”, na língua dos índios
Kamayurá). Com o corpo e a voz emoldurados harmonicamente por teclados e um
violoncelo, a cantora entregou-se a uma espécie de dança, espiritual e
corporal, que é também uma invocação ao sobrenatural e aos entes mágicos que
povoam a floresta da Amazónia. Agitou o ar, os braços e as pernas, pondo a
vibrar energias primordiais, a voz ora erguendo-se aos agudos do vento, ora
descendo ao barro gutural e aos timbres húmidos da floresta.
Cortando a assombração, a segunda parte, composta por uma
homenagem a diversos compositores brasileiros do século passado, com especial
ênfase em Heitor Villa-Lobos, esteve a cargo da Camerata Atheneum. Funcionou
como um interlúdio clássico, a preparar o público para a síntese final,
inteiramente preenchida pela oratória “Kewere” (“rezar”), sobre textos em
língua tupi do séc. XVIII do padre jesuíta José de Anchieta.
“Kewere”, na sua versão integral escrita para orquestra sinfónica
e coro, é um manifesto ecológico em forma de “suite” que integra elementos da
música de câmara, fragmentos vocais “a capella” e trechos instrumentais que
tanto remetem para o pós-modernismo barroco de Hector Zazou (da fase de
“Géologies” e “Géographies”) como para o trabalho orquestral de Egberto
Gismonti, em particular a sua obra também ela com base na cultura da Amazónia.
De um extremo rigor na leitura da complexidade da peça, festiva
ou primal na abordagem ritualística das partes “a capella”, Marlui Miranda
estabeleceu ainda com o público um tipo de comunicação que não é habitual neste
tipo de festivais. Em vez das tantas vezes patéticas palminhas de
acompanhamento, a multidão que enchia por completo a Fábrica Mundet viu-se, sem
saber bem como, mas completamente enfeitiçada pela proeza, a cantar em
contraponto e com afinação mais do que conseguida, partes vocais de alguma
complicação, sob a direção de mestre Marlui, “a índia”. Final apoteótico para
um concerto diferente, a abrir perspetivas de programação interessantes a
edições futuras do Cantigas do Maio.
EM RESUMO
Milagre Ritual,
rigor e classicismo fundiram-se numa missa de prodígios em louvor à Amazónia. Um
desses milagres — o da comunicação — teve no público um parceiro à altura
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