CULTURA
SÁBADO, 24 MAR 2001
Com uma pequena ajuda dos amigos
Homenagear os Beatles é uma boa ideia. Sobretudo
quando hoje, volvidos 30 anos sobre a extinção do grupo, já é possível afirmar
com alguma segurança que eles foram uma das bandas pop mais importantes de
sempre. Mas não é fácil pegar numa canção dos Beatles. São demasiado perfeitas
e completas. "She loves you", por exemplo. Tem uma melodia indigente
e uma letra parva, mas na voz de John Lennon e Paul McCartney soa como uma
sinfonia ao amor.
"Come
Together" juntou no palco do Pavilhão Atlântico, em Lisboa, uma série de
artistas portugueses dispostos a interpretar, recriar ou massacrar as canções
dos "fabulous four". Na plateia, cotas, adolescentes e cotas
disfarçados de adolescentes salivavam na expetativa de embarcar na máquina do
tempo para viajar até esses anos em que uma canção pop justificava toda uma
existência. A máquina, na maior parte dos casos, emperrou.
Coube
aos Blind Zero carregar na tecla "on". Abriram sonolentos com
"I'm only sleeping" antes de passarem a duas canções psicadélicas,
"do tempo em que os ácidos eram de boa qualidade", "Strawberry
fields forever" e "Tomorrow never knows". Se a voz do vocalista
naufragou nas "nuances" de melodias apenas passíveis de decalque sob
o efeito das tais substâncias alucinogéneas de qualidade, as guitarras
mergulharam num mar de eletricidade, garantindo aos Blind Zero o comprovativo
de "banda que ousou arriscar". Terminaram com "She loves
you" sem conseguirem fazer esquecer que a letra é mesmo indigente e a
letra mesmo parva.
Nos
intervalos entre cada atuação, o ecrã gigante instalado acima do palco mostrava
imagens de arquivo da RTP, com excertos de documentários, clips, filmes e
canções dos homenageados. "Love me do", "Yesterday",
"Can’t buy me love", "Yellow submarine"... Recordações dos
anos de histeria.
Mafalda
Veiga cantou "Drive my car", "You've got to hide your love
away" e "Hey Jude" como se tivesse acabado de sair da cama.
Transformou uma canção quadrada como "Hey Jude" num retângulo rombo.
Atuação preguiçosa, a provocar bocejos.
Curiosamente,
foi uma banda cujos membros ainda não eram nascidos quando os Beatles morreram,
os Silence 4, a primeira a socorrer-se da criatividade, em vez da vénia.
Transformaram "Help" numa litania arrastada sobre a solidão e
"Blackbird" numa canção nova onde apenas o coro guardava as notas da
melodia original.
A Ala
dos Namorados pareceu não ter muito a ver com os Beatles. Preocuparam-se com a
perfeição formal em "Eleanor rigby", tiraram partido da voz de Nuno
Guerreiro num dueto voz/piano, em "Yesterday" e juntaram efeitos de
"vaudeville" a "Penny lane". Competentes mas demasiado
frios.
Os
Clã foram outra das surpresas da noite. Se "Everybody's got something to
hide except me and my monkey" manteve o mesmo formato rock, a carga
energética que lhe foi injetada pela banda do Porto transformou o tema num hino
contemporâneo, o mesmo acontecendo a "A hard day's night". Mas foi em
"Lucy in the sky with diamonds" que os Clã mostraram que não estavam
ali apenas para "brincar com uma coisa séria". A voz de Manuela
Azevedo, processada eletronicamente, tirou Lucy da tumba para cavalgar de novo
até às estrelas com os olhos de caleidoscópio a brilhar.
Para
o fim ficaram os mais velhos, os que se lembram melhor. Não pareceu. "Sgt.
Peppers lonely heart's club band", "With a little help from my
friends" e "While my guitar gently weeps" foram transformadas
pelos Xutos & Pontapés numa sessão de berraria. Os Xutos pontapearam os
Beatles. Faltava Rui Veloso, beatlemaníaco confesso. Nas bancadas a expetativa
adensava-se. As manas Jardim (uma quantidade delas) ajeitavam as t-shirts, o
cabelo e a pose para as objetivas da imprensa cor-de-rosa, bamboleando-se ao
som de "Get back".
Quando
Rui Veloso tomou conta do palco, sentiu-se um brilhozinho nos olhos dos mais
velhos. O pai do rock português desdramatizou. "Something" foi
apresentado como "Qualquer coisa" e "Girl" como
"Moçoila". Cantou num registo equidistante de Tom Jones, Serafim
Saudade e Zé Cabra. "The long and winding road", em tom de
"music hall", preparou o terreno para "Let it be", com a
letra projetada no ecrã gigante, de maneira a poder ser cantada em coro por
todos. O final, pretensamente apoteótico, juntou a troupe inteira de artistas
no palco para mais uma dose de "Let it be", tornada gigantesca sessão
de karaoke. Mas mesmo o adepto mais ferrenho dos Beatles já estava cansado e,
ao fim desta dose de Beatles a martelo, suspeita-se que suspirasse por ouvir os
Rolling Stones. Vai uma homenagem?
Apesar
de tudo, espera-se que "Come together" não tenha acontecido em vão. É
bem possível que, "with a little help from these friends", a coletânea
"1" volte a conquistar o número um...
Graus de Beatlemania
Blind Zero: Psicadélicos
Mafalda Veiga: Preguiçosa
Silence 4: Criativos
Ala dos Namorados: Formais
Clã: Lúdicos
Xutos & Pontapés: Barulhentos
Rui Veloso: Meloso
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