ENTREVISTA COM O
LÍDER DOS LOUNGE LIZARDS, QUE ATUAM A 20 NO CCB
JOHN LURIE, MAIS
ESTRANHO DO QUE O PARAÍSO
Embora fosse o
niilismo da “no wave” que o arrancou para fora do gueto do jazz convencional,
John Lurie voou rapidamente para o alto com os seus Lounge Lizards, o seu grupo
de sempre com o qual atuará pela primeira vez em Portugal. Se os microfones
ajudarem, poderá ser uma "experiência religiosa". De música
"estranha e maravilhosa", o nome da sua editora.
O Centro Cultural de Belém (CCB)
poderá ser palco, no dia 20, às 21h30, de um dos concertos do ano. Os Lounge
Lizards prometem confundir os puristas do jazz. John Lurie, líder da banda, saxofonista,
compositor, ator e quase, quase, o autor do discurso de Roberto Benigni na
cerimónia dos Óscares, falou ao PÚBLICO da impressão que lhe causou ouvir, há
20 anos, as contorções musicais de James Chance, e da impressão que ainda lhe
causa ver Benigni agir como um palhaço.
Um aviso: cuidado com o homem antes
de pegar no saxofone. É que, como a personagem que interpretou num filme
esquisito de Amos Poe, "Subway Riders", pode tornar-se de súbito num
assassino e matar alguém. John Zorn, por exemplo, o rei da música sado-maso,
que às vezes o chateia imensamente.
PÚBLICO – “Strange and Beautiful
Music”, a editora que criou, foi feita para editar toda a espécie de discos ou
obedece a algum critério estético?
JOHN LURIE – Destina-se
essencialmente a editar a minha própria música da maneira mais pura possível.
P. – O que quer dizer com “pura”?
R. – O que acontece é que quando se
grava um disco normalmente a editora tenta modificar a música. Tentam alterar a
capa do álbum, a duração dos temas, tudo de que se conseguem lembrar.
P. – Duas das suas bandas sonoras a
solo, “Stranger than Paradise” e “Down by Law”, vão ser reeditadas na “Strange
and Beautiful Music”. Não estava satisfeito com as edições originais, para a
Crammed?
R. – A Crammed deve-me dinheiro há
tanto tempo que já nem me consigo lembrar de quanto. Não pagaram, continuam a
não pagar e nunca me hão-de pagar. Parece que estão com problemas financeiros e
que a coisa está mesmo mal, por isso...
P. – Outra banda sonora que assinou
recentemente, “African Swim”, é considerada música excelente para um filme
bastante mau. É assim?
R. – Não é, de facto, um filme muito
bom. Acabei por retirar a música da companhia e guardá-la para edição fora do
contexto do filme.
P. – Para “Manny & Lo”, um filme
de Lisa Kruger, diz-se que procurou fazer algo com a mesma carga de energia dos
Nirvana. É verdade?
R. – Isso foi porque ela já conhecia
uma canção deles quando estava a fazer a montagem do filma mas não tinha meios
económicos para a poder utilizar. É uma canção onde uma rapariga dança ao som
de um autorádio, não me lembro do título. Disse-lhe que poderia fazer uma coisa
semelhante e foi isso mesmo que acabei por fazer.
“Posso fazer tudo”
P. – Quer dizer que tem a alma de um
rocker?
R. – Quer dizer que posso fazer
tudo.
P. – Como “Fishing with John”,
música para a série televisiva sobre pesca que gravou com amigos como Tom
Waits, Dennis Hopper, Matt Dillon ou Willem Defoe? Uma das coisas estranhas
deste disco é o facto de quase não tocar saxofone, passa o tempo a cantar, a
tocar guitarra, banjo ou uma harmónica...
R. – Toco saxofone soprano em dois
temas. São composições para televisão e era preciso algo mais apropriado ao
que se passava nos programas. Depois, o saxofone é um instrumento estranho nas
minhas mãos. Tenho sempre outras coisas com que me preocupar, por exemplo o
facto de a banda não tocar desde Novembro passado. Recomecei a treinar no sax
no mês passado mas quando se está parado durante algum tempo e depois se
recomeça é terrível!
P. – Depois de “Voice of Chunk”, os
Lounge Lizards regressaram com um novo álbum de estúdio, “Queen of all Ears”.
Confirma que o título foi aproveitado de uma frase de “Electric Ladyland”, de Jimi Hendrix?
R. – Sim, a frase aparece nas notas
de capa, onde ele diz “And on he walked until after crowning Ethel the dog,
queen of ears”. Eu modifiquei-a para “Queen of all Ears” o que altera um bocado
o sentido inicial, seja ele qual for.
P. – Já o ouviram dizer que ao vivo
a música dos Lounge Lizards tem uma “ferocidade” que não passa no estúdio. Os
dois volumes que gravaram em 1991, “Live in Berlin” são, de facto, algo de
muito especial. Porque é que não gravaram mais álbuns ao vivo depois disso?
R. – Deve-se a questões técnicas
difíceis de resolver. Em “Live in Berlin” não gosto da maneira como soam o
saxofone e o violoncelo. O problema está em todos aqueles microfones espalhados
pelo palco quando se trata de uma banda grande. Calvin Weston, o baterista, por
exemplo, tinha o volume dos microfones incrivelmente alto, daí o som que saía
ser pavoroso. E como não gosto de tocar com auscultadores nos ouvidos... Apesar
disso penso que fizemos um bom álbum ao vivo gravado em Tóquio muito tempo
antes, “Big Heart”.
P. – Depois de alguns anos de
ausência, o seu irmão Evan Lurie regressou ao grupo. Quem é que tomou a
iniciativa?
R. – Penso que se fartou de passar
pelo meu irmãozinho mais novo, já que a sua carreira a solo até estava a correr
bem, com imensos convites para bandas sonoras. Aconteceu também que íamos
partir para uma digressão e o nosso organista da altura, John Medeski, não
podia tocar. Convidei Evan para o substituir, só para essa digressão, mas
acabou por ficar também para a seguinte, permanecendo no grupo até hoje.
P. – O que tem a dizer sobre outros
dois músicos importantes que passaram pelos Lounge Lizards, Curtis Fowlkes e
Roy Nathanson, que depois saíram para formar os Jazz Passengers? Acha que são o
contraponto aos Lizards?
R. – Tenho a certeza que aprenderam
muita coisa comigo. Algum do material que tocam é muito parecido com a nossa
música. Outro nem tanto. Mas gosto de os ouvir. O Roy consegue tocar tão
desafinado...
Música religiosa
por rapazes espertos
P. – Disse uma vez que em termos de
bom relacionamento entre os músicos, os Lounge Lizards eram mais parecidos com
os Chieftains do que com Winton Marsalis. Mas os Chieftains têm praticamente a
mesma formação desde que começaram, há mais de 30 anos, enquanto os Lizards
estão sempre a trocar de músicos. Como explica esta comparação?
R. – Há músicos que estão a tocar
comigo há cerca de dez anos, sabe? E a banda que irá tocar a Lisboa é a mesma
há três anos e meio.
P. – É a mesma formação que toca em
“Queen of all Ears”?
R. – Não, há três músicos novos. É
que o álbum só saiu o ano passado mas já estava gravado há mais tempo.
Problemas legais com a editora, a Warner Brothers, obrigaram a sucessivos
adiamentos.
P. – Um dos temas de “Queen of all
Ears”, “The John Zorn S & M circus”, é uma homenagem a John Zorn, uma
crítica ou uma brincadeira?
R. – Penso que é uma homenagem e um
insulto. Gosto de John Zorn mas há ocasiões em que ele dá cabo dos meus nervos.
Há alturas em que adoro ouvi-lo tocar saxofone mas noutras é tão chato que
sinto vontade de matá-lo.
P. – Que tipo de experiência é que
teve em Marrocos ao ouvir tocar alguns músicos gnaoui? Na altura falou num
experiência religiosa...
R. – Foi num período em que a minha
escrita estava a sofrer um processo de transformação. Um amigo meu, francês,
levou para o meu quarto, a meio da noite, dois músicos gnaoui [NR: de raça
negra, descendentes de escravos, oriundos da Guiné ou do Sudão]. Toquei com
eles, foi como tocar com um baixista e um baterista novos. Nunca os tinha
ouvido antes, mas senti de imediato a sua influência. Foi como se a música deles
libertasse a minha música. Como se deitasse abaixo um muro que me impedia de
avançar.
P. – Mas, e insisto, chegou a
referir-se ao ato de tocar como um “ritual religioso”. Poderia ser uma frase de
John Coltrane. Ou de John McLaughlin, que um dia afirmou que não tocava música,
era a música que o tocava a ele.
R. – Sim, no papel soa um bocado a
uma frase batida, mas é verdade, a melhor música é algo que passa através de
nós. Limitamo-nos a ser antenas. Mas não me sinto muito à vontade a falar deste
assunto, até porque a minha nova máxima é “música religiosa tocada por rapazes
espertos”, o tipo de pessoas que está sempre a gozar com qualquer coisa.
Benigni, como
Einstein
P. – Como é que vai a sua atividade
de ator?
R. – Não sou verdadeiramente um
ator. Nos filmes de Jarmusch é diferente, porque se trata de uma forma muito
aberta de fazer cinema. Mas em todos os filmes de Hollywood em que participei
[“A Última Tentação de Cristo”, de Scorsese, “Paris, Texas”, de Wim Wenders ou
“Coração Selvagem”, de David Lynch] senti-me numa prisão.
P. – Contracenou com Roberto Benigni
em “Down by Law” e entrou num filme já realizado por ele, “O Pequeno Diabo”. O
que pensa deste italiano consagrado pelos Óscares?
R. – Podia escrever um livro sobre
Benigni! É um génio maravilhoso. Pediu-me para eu escrever o discurso para os
Óscares! Avisei-o para não agir como um bobo [do outro lado da linha John imite
uns ruídos grotescos a imitar os trejeitos vocais do realizador/ator italiano].
As pessoas não conseguem ver a pessoa maravilhosa que ele é, porque ele age
como um palhaço. É como o Einstein, tem um coração gigantesco. Sinto pena
quando o vejo agir daquela maneira. E ele é precisamente o oposto, na vida
real, muito calmo e ponderado. Mas na televisão, não há nada a fazer [John
desata outra vez a gritar como um louco...].
P. – Quando os Lounge Lizards
lançaram o primeiro álbum, no início dos anos 80, ainda ecoavam os ruídos
produzidos pela cena “no wave”, de grupos como os Mars ou os DNA.
Identificava-se como todo aquele niilismo?
R. – Esses tipos ajudaram-me. Eu
andava a tocar jazz, de uma maneira normal, mas odiava o que fazia, sentia que
era um anacronismo. A “no wave” fez-me descobrir uma energia nova.
P. – Esclareça um enigma. Lembra-se
de um outro filme em que participou, “Subway Riders”, de Amos Poe? Também
entrava outro saxofonista da “no wave”, James Black, ou James Chance...
R. – [interrompendo de imediato] Com
certeza! Quando ouvi tocar James Chance pela primeira vez, há 20 anos, achei-o
absolutamente incrível, a coisa mais espantosa que alguma vez vi!
P. – O enigma é outro. É que a
personagem do saxofonista assassino tanto é interpretada por si como, noutra
cena a seguir, por outro ator que, ainda por cima, é parecido consigo. O que é
que se passou?
R. – Sim, era eu, só que desisti a
meio e foi o próprio realizador que acabou por ter que desempenhar o meu papel!
Fui depois ver o filme e há uma cena, perto do final, em que a personagem é
baleada e é transportada, moribunda, no banco de trás de um carro, lançando a
seguinte tirada: “Não sou o saxofonista, sou o realizador do filme!”. Nessa
altura abandonei a sala. Custa-me acreditar que alguém tenha visto esse filme.
P. – A personagem matava sempre
alguém, depois de tocar saxofone...
R. – Eu prefiro matar antes de
tocar! (risos)
sexta-feira, 16 Abril
1999
ARTES
& ÓCIOS
Sem comentários:
Enviar um comentário