15/11/2016

Foi de gritos [Rickie Lee Jones]

CULTURA
SEXTA-FEIRA, 2 FEV 2001

Crítica Música

Foi de gritos

Rickie Lee Jones
Aula Magna da Universidade de Lisboa
31 de Janeiro, 22h
Sala praticamente cheia.

Era aguardada com enorme expetativa a primeira apresentação ao vivo em Portugal da cantora americana Rickie Lee Jones. A avaliar pela receção apoteótica e pelo entusiasmo com que foi recebida, a estreia foi um êxito. No entanto, e se quiséssemos ser maus, diríamos que foi, durante largos minutos, uma prova de resistência. Porque a cantora dos discos não coincide em absoluto com a cantora dos concertos ao vivo. A última fica a perder.
Rickie Lee Jones apresentou-se na Aula Magna da Universidade de Lisboa como uma verdadeira filha de Woodstock. Saia preta, larga, até aos pés, colete escuro sobre camisa "de intervenção", cabelos loiros, longos e escorridos, guitarra acústica a tiracolo. A imagem recordou a pose de Joan Baez, Judy Collins, Joni Mitchell e de outros trovadores no feminino que nos anos 60 cantavam o amor e a revolução. A autora do recente álbum de "covers", "It's like these" não é tão velha como isso (tem 46 anos) mas a tradição em que se insere é, sem dúvida, a dos clássicos, ou não fosse ela discípula de Tom Waits e consultante assídua da pop, folk e jazz dos anos 40.
O mesmo se pode dizer da classe que se desprende da maioria da sua discografia, culminando nos dois momentos que serão os polos opostos de uma mesma sensibilidade musical, os álbuns "Pop, Pop", exemplar da veia mais jazzy e clássica, e "Ghostyhead", expressão experimentalista do lado mais sombrio e inquieto da sua personalidade.
Ao vivo, porém, e pelo que foi dado a ouvir, a magia esfuma-se um pouco. Na Aula Magna, pouco ajudada pelo som da mesa de mistura, a voz da cantora mostrou, sobretudo nos médios, um timbre metálico e uma estridência capazes de darem cabo dos nervos de qualquer um. Extroversão traduziu-se mais do que uma vez em gritaria e Rickie, neste aspeto, revelou-se exímia, umas vezes parecendo uma peixeira a vender o seu produto, noutras uma galinha a quem estivessem a apertar o pescoço. Além disso, swing é coisa em que Deus não foi pródigo ao conceber a voz da cantora de Chicago.
À boa maneira dos "singers songwriters" dos anos 60, a "mensagem" sobrepôs-se com frequência à música, pelo que não foram poucos os momentos em que a torrente de palavras quase a asfixiava, extravasando as notas para fora do compasso e a voz para fora do microfone. Convém frisar que os discos são diferentes.
Como diferente foi o último terço de um concerto que se alongou por cerca de hora e meia e passou em revista canções dos álbuns "Traffic from Pardise", "Rickie Lee Jones", "Ghostyhead", "Flying Cowboys", "Pirates", "Naked Songs" e o novo "It's like these" ("Showbiz kids", "On the streets where we live" e "Trouble man"), quando a cantora, depois de um "tour de force" ao piano, se descontraiu e a voz entrou num registo de intimismo caloroso que fez enfim justiça à qualidade de canções, algumas delas inéditas, como "Easter parade" e "The moon is made of gold".
Rickie Lee Jones é uma cantora de interiores, de histórias para serem contadas em segredo. Não tem, como Tom Waits, um vozeirão, mas um instrumento que brilha tanto mais quanto se aproxima do silêncio e, por paradoxal que possa parecer, se liberta do peso das palavras.
Daí que os melhores momentos da sua atuação fossem aqueles em que dialogou - quase garantimos que improvisou - com o contrabaixo, dedilhado ou tocado com arco, de Paul Nowinski. De resto, a ele, bem como a Matt Johnson, na bateria, e Sal Bernardi, na guitarra, deverá a cantora agradecer ter conseguido manter a voz em equilíbrio e o berreiro dentro dos limites do aceitável. Mas Rickie Lee Jones é como é e a sua música "it's like these": uma confissão de sentimentos que, mais do que sob a luz dos holofotes, se revelam na solidão.

EM RESUMO
A voz
As canções falaram bem melhor quando o canto se acalmou e o coração teve espaço para respirar.

Os músicos
Os três músicos acompanhantes foram o garante do equilíbrio, não só da voz, como da totalidade do espetáculo.

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