28/11/2016

Contra a inflação, o fogo cigano [FMM Sines]

CULTURA
TERÇA-FEIRA, 31 JUL 2001

Crítica Música

Contra a inflação, o fogo cigano

Carmen Linares, Taraf de Haidouks
Sines Castelo. 27, 6ª, às 21h30
Andrea Marquee, David Murray,
“M’Bizo”, Black Uhuru com Sly &Robbie
Sines Castelo. 28, sáb., às 21h30.
Lotações esgotadas.

Só um grupo com a vitalidade e o virtuosismo dos Taraf de Haidouks (na foto) conseguiria ultrapassar as dificuldades criadas pelo deficiente som que afetou a atuação do grupo romeno na sexta-feira, segunda noite do festival Músicas do Mundo, que no passado fim-de-semana decorreu em Sines. Nunca se ouviu o cymbalon, os violinos faziam-se ouvir um de cada vez.
Mesmo assim, e como sempre acontece nos espetáculos desta formação cigana, nada consegue suster o vigor e o entusiasmo com que se entregam à música. Depois de começarem, não há quem ou o que os faça parar. E se o som esteve mau, o público pouco ligou, aderindo sem reservas ao virtuosismo e à velocidade, por vezes estonteante, com que os Taraf de Haidouks transpõem para o palco de um festival as celebrações dos batismos, casamentos e funerais de Clejani, aldeia da Valáquia, onde habitualmente vivem.
Dançou-se e saltou-se. Sob o impulso demoníaco dos violinos, do acordeão e da flauta. Os Taraf de Haidouks fizeram o seu número sem ligarem às dificuldades técnicas. Tocaram como fazem sempre, como se da música dependesse a sua sobrevivência. Dando tudo. O Músicas do Mundo pode agradecer-lhes grande parte do êxito desta sua terceira edição.
Além do som, quem também não ajudou foi o “cameraman” a quem cabia a tarefa de filmar — para projeção em tempo real nos dois ecrãs-gigantes que ladeavam o palco — os músicos em ação. Quando solava com ardor um dos violinistas era vê-lo assestar as lentes no acordeonista. Disparava o flautista num vórtice de velocidade, chamando a si todas as atenções, logo a câmara se concentrava no acompanhamento do cymbalon...
Antes, Carmen Linares ofereceu com dignidade a faceta mais clássica do flamenco. Voz velada, ligeiramente rouca, soltou as “soleás” e “alegrias” com a profundidade e dádiva que o “cante jondo” exige. Carmen Linares, furacão de vestes, pés e mãos esvoaçantes, atacou com paixão o estrado, dançando e sapateando na lide contra e a favor da alma que é o flamenco.
Sábado, último dia do Músicas no Mundo, dividia o cartaz por três atuações. Disposta a derreter o frio, Andrea Marquee entrou primeiro. Mulata sensual, os requebros do seu corpo impressionaram tanto ou mais que a voz. A autora de “Zumbi” mostrou, pelo menos ao vivo, ser um poço de energia, dando por vezes a sensação de que essa força poderia ser talvez menos lançada ao desbarato e mais canalizada para a música propriamente dita.
Dos ritmos nordestinos ao samba esfuziante, da Tropicália ao “trip hop”, Andrea esganiçou-se e arrancou de si quase tudo o que tinha para dar. A voz, sempre nos limites, descarrilou uma ou outra vez para fora do tom, mas dado o entusiasmo colocado na função e a sensualidade da sua presença, a brasileira acabou por ser uma das mais valias do festival. O público pediu mais mas não teve. Rui Neves, apresentador de serviço, deu a justificação possível: Foi para “não inflacionar a artista”.
Seguiu-se o projeto “M’Bizo”, do saxofonista David Murray, e o som traiu uma vez mais o desempenho dos músicos. Tudo se esqueceria à custa das duas horas prometidas de reggae servidas pelas estrelas Black Uhuru na companhia de Sly Dunbar, na bateria, e Robbie Shakespeare, no baixo. Os “riffs” de baixo (Shakespeare é, de facto, um motor poderosíssimo...) sucederam-se, o “dub” fez eco nas dezenas de pessoas que correram a sacudir-se mais de perto, para a boca de cena, tocou-se no hard rock.
Porém, o momento mágico aconteceu quando, cumprindo uma tradição do Músicas do Mundo, o fogo-de-artifício explodiu no céu, ao mesmo tempo que os músicos mantinham um “riff” em suspensão, também eles deslumbrados pelo momento. Mas a magia passou e as luzes apagaram-se por fim. Uma vez mais sem “encore”. “Tiveram que se ir embora”, justificou Rui Neves, despedindo-se até ao ano que vem: “Right on!”


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