CULTURA
SEGUNDA-FEIRA, 2 ABR 2001
Crítica
Música
O regresso
de Djed
Tortoise + The Sea and Cake
Paradise Garage, Lisboa.
31 de Março, 21h30.
Casa cheia
Para muitos, a estreia ao vivo em palcos portugueses
dos Tortoise, na noite de sábado, no Paradise Garage, em Lisboa, foi como que a
concretização de um sonho há muito acalentado. Não era para menos. A banda de
John McEntire e compinchas é uma das referências incontornáveis do pós-rock de
Chicago e a qualidade de toda a sua discográfica justificava a expetativa que
rodeava esta sua apresentação fora do estúdio.
Foi
um bom concerto, sem ser excecional. Depois de uma primeira parte assegurada
pelos The Sea and Cake, outra personificação da febre criativa de McEntire –
que terá passado ao lado de muita gente, convencida que a música começaria às
21h30 indicadas nos bilhetes, quando na verdade a primeira banda deu início à
sua atuação pouco passava da nove –, os Tortoise invadiram o palco,
desarrumando-o por completo. Músicos para um lado e para o outro numa
roda-viva, a arrastar fios e equipamento, numa espécie de metáfora do que viria
a seguir. E o que veio a seguir foi uma bomba despoletada com a cacofonia de
guitarras de "Seneca", que abre o último CD do grupo, evocação
oblíqua a "Star spangled banner" de Jimi Hendrix.
A
partir daí a música derivou ao longo do alinhamento de "Standards",
sobrepondo marcações marciais de bateria, eletrónica rústica, guitarras em
"riffing" de krautrock, vibrafones minimalistas e semi-improvisações
que ora se aproximavam do difícil equilíbrio mantido no álbum, ora se afastavam
para experimentar a consistência de geografias virgens. "Standards" é
um álbum de explosões e implosões sonoras e, a esse nível, o concerto
correspondeu na mesma moeda, ao sustentar-se de contrastes e de sucessivos
"falsos começos" e "falsos finais". Entre o rock, a eletrónica
manipulada em tempo real e tímidas incursões no jazz ou no minimalismo, a
música dos Tortoise conseguiu a proeza de nunca perder o fio à meada e de
resistir ao apelo da desagregação que tantas vezes faz confundir a
experimentação e a improvisação com a condescendência e a falta de proficiência
instrumental.
Sem
serem músicos brilhantes, os Tortoise mostraram, no mínimo, competência e
seriedade, além de cultura musical. Evidenciada nas citações, perfeitamente
assumidas, interiorizadas e reformuladas de uma música que foi capaz de
transcender os limites do pós-rock.
Num
movimento de recuo no tempo que partiu de "Standards" para chegar a
um dos momentos de maior brilhantismo da sua discografia, "Millions Now
Living Will Never Die", os Tortoise foram sedimentando a postura em palco
(já não se mexiam tanto, embora continuassem a ser frequentes as trocas de
instrumentos entre os músicos) e ganhando segurança nos sons. Quando menos se esperava,
fizeram-se ouvir os primeiros vagidos eletrónicos de "Djed", os tais
20 minutos de "Millions Now Living..." que em 1996 agitaram as águas
do pós-rock. A batida "motorika" aprendida como os Neu! avançou até
ao momento em que os dois vibrafones entraram em diálogo
"stevereichiano". Subitamente, porém, a hipnose quebrou-se, e
"Djed" interrompeu-se a meio, certamente não por causa dos assobios
lançados por aquela parte da assistência que manifesta o seu desagrado sempre
que a música – seja ela qual for – escapa aos parâmetros "normais" a
que está habituada. Afinal, rock ou pós-rock será apenas uma questão
semântica... Venham pois as guitarras e o 4/4 que o pessoal quer é desbundar.
Apesar do retorno à "normalidade", foi difícil desbundar com o quase
easy-listening lounge de "Blackjack", um dos momentos mais divertidos
e de maior dissidência ao conceptualismo rigoroso de "Standards".
O
tempo apertava, porém. O Paradise Garage faz questão de funcionar como
discoteca a partir da meia-noite e assim os Tortoise, ao fim de cerca de hora e
meia que passou depressa, desculparam-se de não poderem continuar. Mas mesmo já
com as luzes da sala acesas, o público pediu mais. Recebeu o melhor. Depois de
um retorno às ondas do mar e ao bucolismo bossa-nova em formato The Sea and
Cake, os Tortoise regressaram para um derradeiro "encore" em que,
finalmente, deitaram para trás o formalismo, lançando-se numa "jam"
de "cosmicrock" arrojada a dar ideia de que o concerto poderia
começar aí e durar a noite inteira. Não era por acaso que os Can, uma das
bandas preferidas dos Tortoise, costumavam dar concertos de seis horas, as duas
primeiras para aquecer...
Mas
para a maioria das 700 pessoas que esgotaram a lotação do Paradise Garage, o
concerto dos Tortoise jamais será esquecido. Será caso para dizer: "700
Now Living Will Never Die".
EM RESUMO
Corte Quando o tema "Djed" se interrompeu a meio de um
dueto de vibrafones minimalistas, ficou nítida a fronteira que separa a fação
revisionista do pós-rock e aquela que em definitivo cortou o "rock"
do seu vocabulário.
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