CULTURA
SEGUNDA-FEIRA,
9 ABR 2001
Crítica
Música
Violinos
para Bartók
João
Afonso e Muzsikas
Porto, Coliseu. Às 22h
Sala praticamente cheia
Parou de chover no Porto. Parou a
chuva mas os buracos, não. Chegaram violinos entretanto. Dos Balcãs. Do grupo
húngaro Muzsikas. Primeiro grande concerto do festival "Noites
Celtas" que na sexta-feira teve início no Coliseu do Porto.
Mas coube ao
português João Afonso abrir o festival. Não foi propriamente abrir, mas mais
entreabrir. A música do sobrinho de um dos músicos mais importantes de sempre
da música popular portuguesa (ele não gosta que citemos o seu nome, para evitar
comparações, mas podemos adiantar que o apelido era também Afonso) pede licença
para se fazer ouvir. Evoca passarinhos, sininhos, estrelinhas, florzinhas e
outras coisas acabadas em "inho" e "inha". Uma musicazinha
agradavelzinha que mal se ouve, logo se esquece. Causa até uma certa apreensão,
sobretudo quando não há bombeiros por perto, de tal modo dá a sensação de que
se pode quebrar ou desmaiar a qualquer momento.
Assim
entreabertas, as "Noites Celtas" abriram de facto com os Muzsikas,
grupo húngaro que já atuara no Intercéltico há algumas edições atrás. Márta
Sebestyen, cantora cujo nome se tornou indissociável dos Muzsikas, não esteve
presente desta vez, mas não se pode dizer que a música se tenha ressentido
muito.
Em termos
técnicos, qualquer dos quatro músicos dos Muzsikas é um executante de exceção.
Mas um dos dois violinistas, Mihály Sipos, então, abusa. O solo arrebatador que
rubricou ainda na primeira parte do concerto, fez a assistência saltar como uma
mola (não é vulgar aplaudir-se de pé, antes de um concerto acabar). Oscilando entre
o lúdico e o didático – por duas vezes fizeram-se ouvir velhíssimas gravações
de campo recolhidas por Béla Bartók, compositor omnipresente na música húngara
do século passado, a quem os Muzsikas dedicaram o seu disco mais recente,
"The Bartók Album" – estas releituras do folclore dos Balcãs
incluíram, além dos instrumentais delirantes, baladas de uma beleza e
delicadeza melódica infinitas. Aliás, por mais extraordinário que possa
parecer, é possível saborear a música sem ser com as mãos. A marcar, ou a
desmarcar, o compasso com as inevitáveis palmas. Usando os ouvidos da alma,
acreditem, encontram-se mil e uma delícias mesmo nos temas lentos. Vale a pena
experimentar.
É verdade que
os próprios Muzsikas nem sempre foram tão ascetas. Quando Péter Istvan Éri
sugeriu que se encontrava à venda no átrio do Coliseu a versão húngara de
"The Bartók Album" (com o bónus apelativo que é a inclusão de um
livrete inteiramente redigido na língua magiar) estava-se longe dos altíssimos
cumes espirituais da música balcânica. Ou quando o convidado especial,
Alexander Balanescu, que já tinha tocado com os Muzsikas em "The Bartók
Album", apresentado de forma coloquial como "Alex", subiu ao
palco, visivelmente bem disposto, para dedicar o seu primeiro solo –
improvisado – de violino ao vinho do Porto. Balanescu é o 1º violino e líder
dos Balanescu Quartet, sendo considerado um dos principais solistas deste
instrumento, na música contemporânea, da atualidade.
Quer nesta
primeira e longa improvisação, quer nos diálogos com Mihály Sipos, na execução
de um par dos complicados e tecnicamente exigentes "Duetos para
violino" de Bartók, Balanescu não deixou os seus créditos por mãos
alheias, mesmo se, quiçá por causa da dose extra de entusiasmo proporcionada
por essa poção mágica que é o vinho do Porto, os fios de crina de cavalo do
arco do violino tenham sofrido um pouco, soltando-se do arco como os cabelos de
uma cabeça com seborreia. E cá para nós, que nem ele nem mais ninguém nos ouve,
a sonoridade aguçada do seu violino não se sobrepôs de modo algum às
tonalidades quentes e ao engenho harmónico de Mihály Sipos.
Terá tocado
mais perto no absoluto e sangrado mais – do estilo, "tocar até
morrer" – a anterior atuação dos Muzsikas no Porto. Esta terá sido mais
contida e elegante, cuidando dos aspectos formais e da gestão do equilíbrio
arquitetónico do espetáculo, em detrimento da pura animalidade e da vertigem da
outra. Ainda assim, grande música, a dos Muzsikas.
DESTAQUE
Duelo de violinos Mihály Sipos
e o convidado Alexander Balanescu teceram armas nos duetos para violino de Béla
Bartók. O tradicional venceu o contemporâneo.
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