01/11/2016

Ler "Siddhartha" é falar com um amigo que nos indica o caminho

CULTURA
QUARTA-FEIRA, 5 JUN 2002

Ler “Siddhartha” é falar com um amigo que nos indica o caminho

LIVRO À VENDA HOJE COM O PÚBLICO

“Siddhartha” faz a narrativa da vida de Siddhartha, filho de brâmane, que um dia decidiu deixar tudo e partir em viagem, à descoberta de si mesmo, do mundo e do amor. O que descobriu poderá também o leitor descobrir. O livro, além do prazer da leitura de uma história bem contada, dá uma ajuda preciosa. Para ler de frente. Olhos nos olhos.


“Olhou de novo em seu redor, como se visse o mundo pela primeira vez. O mundo era belo, estranho e misterioso. Havia azul, amarelo e verde, havia céu e rio, havia florestas e montanhas, tudo belo, tudo misterioso e fascinante, e no meio de tudo estava ele, Siddhartha, o que despertara, a caminho de si mesmo.” O excerto pertence a “Siddhartha”, o livro que hoje é vendido com o PÚBLICO (jornal+livro= 5 euros), e é uma síntese luminosa do essencial do espírito e da letra budistas. Não foi escrito por nenhum yogi, nenhum monge, nenhum adepto atingido pelo “satori”, mas por um alemão naturalizado suíço, o qual, que se saiba, não levitava, nem tinha por costume pronunciar a sílaba sagrada “aum”.
            Hermann Hesse (1877-1962) escreveu “Siddhartha” em 1922 e desde essa data o livro tornou-se uma espécie de compêndio de vida e manual de aprendizagem espiritual para muitos ocidentais que nele encontraram eco e caminho. Pode ser lido também como uma história, na exata medida em que todas as vidas contam uma história. Siddhartha é um homem apenas um pouco mais disciplinado, um pouco mais inquieto do que cada um de nós. O seu amigo Govinda segue-o, seguindo um caminho paralelo. Sigamos na peugada de ambos. “Siddhartha”, entre múltiplas virtudes, tem uma que convém guardar: é um livro que fala.
            Isso aprendeu-o Hermann Hesse, fruto não só do contacto com a doutrina budista, conformas também com a filosofia do eterno retorno expressa pelo filósofo idealista e seu compatriota, Friedrich Nietzsche, cujos livros também falam (“Assim Falava Zaratustra” até fala demais...). Basicamente, o eterno retorno representa a negação do tempo e da afirmação de uma eterna instantaneidade à qual tem acesso apenas a consciência desperta. O Aleph de Jorge Luis Borges e o “satori” do budismo zen.
            O que aconteceu há dez mil anos está a acontecer agora. O que foi sabido há dez mil anos pode ser sabido agora. O psicólogo Carl Gustav Jung punha a mesma questão noutros termos e falava de um estrato psíquico comum a todos os homens, em todas as épocas. Chamou Inconsciente (há quem prefira o termo “Ultraconsciente”) Coletivo a esse reservatório de sapiência — e de loucura, caso o vaso transborde — onde estão inscritos os arquétipos do humano. Se, como diz Siddhartha, o caminho é do homem para si mesmo — e, como consequência, porque intimamente todos partilham de uma mesma matriz, de si mesmo para os outros —, esse caminho terá de passar necessariamente pela navegação através desse mar desconhecido da mente. Há livros sobre a arte de navegar escritos assim. “Siddhartha” é um deles.
            Hermann Hesse, um pacifista para quem a civilização ocidental estava amaldiçoada e cada indivíduo deveria demandar a sua natureza mais íntima, fez, aliás, psicanálise com um discípulo de Jung, no período de crise desencadeado pela eclosão da Primeira Grande Guerra. O contacto com as teorias de Jung (que, com Ronald Laing, haveriam de levar à antipsiquiatria, mas isso é outra história...), reorientou a sua vida e a sua escrita para obras como “Demian”, “Peregrinação ao Oriente” e, principalmente, os clássicos “Siddhartha”, “O Lobo das Estepes” e “Narciso e Goldmundo”.
            Buda está sentado em posição de lótus “dentro” do Inconsciente de Jung. É preciso matar Buda para ser Buda. A vida é contraditória. O livro “Siddhartha” também. Significa que está vivo.


O olhar de um budista português sobre o livro

Há muitas e diversificadas maneiras de se ler “Siddhartha”. Umas mais atentas e reverberantes do que outras. Paulo Borges, poeta, filósofo e professor, atual vice-presidente da União Budista Portuguesa e da Songtsen-Casa da Cultura do Tibete, já trilhava a sua própria estrada quando leu o livro. Terá, portanto, dele, uma visão mais distanciada. “Li o livro tardiamente, talvez há seis ou sete anos, quando já era budista há muito tempo. Sendo assim, o seu impacte foi porventura atenuado, porque o que de mais profundo encontro no livro já a vida e os meus mestres budistas mo tinham inspirado a descobrir em mim mesmo”, diz o autor de dois livros sobre o modo de ser e estar português, “Do Finistérreo Pensar” e “Pensamento Atlântico, e que atualmente prepara a edição das obras de Agostinho da Silva, para a Âncora.
            Paulo Borges olha com olhos multifacetados para Siddhartha, filho de nobres, que um dia abandonou o ter pelo ser. “Em Siddhartha, tal como em muitas obras de ocidentais sobre o budismo, há por um lado um certo desconhecimento da complexidade do Dharma do Buda, que assume aspetos bastante diversos conforme se fala do Pequeno Veículo, do Grande Veículo ou do Veículo de Diamante. E, por outro, há
na obra, conforme fica bem nítido no diálogo entre Siddhartha e o Buda, a típica dificuldade do espírito individualista ocidental reconhecer que não há a mínima oposição entre seguir-se um mestre e ser-se obrigado a fazer o seu próprio caminho de auto-descoberta e auto-realização, superando a relação exterior entre mestre e discípulo”, explica, reconhecendo embora que, “para além disto”, Hermann Hesse, “não sendo propriamente um budista, não deixa de oferecer algumas das mais penetrantes visões do sentido da experiência budista”.
            Siddhartha aponta, segundo Paulo Borges, para “a superação de toda a moral”. “A questão não está”, diz, em “dever ser, isto ou aquilo, deste ou daquele modo, por esta ou aquela razão, mas antes ser, ser tudo, de todas as maneiras, sem nenhum porquê nem para quê, transcendendo mesmo a oposição conceptual entre ser e não ser”. Unidade que o poeta português encontrara já “em Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa e Teixeira de Pascoaes, nos místicos de todas as religiões ou sem qualquer religião” e nele próprio, “ou seja, em tudo”.
            Se “Siddhartha” ecoará hoje nos corações dos jovens com a mesma força que ecoou sobretudo nas décadas de 60 e 70, eis uma questão, para Paulo Borges, “difícil de avaliar”.
            Se, por um lado, acentua que “há hoje um maior conformismo da juventude, encantada com a perspetiva do sucesso, do bem-estar material, dos prazeres fáceis e imediatos”, por outro, torna-se-lhe claro que “quando o estado geral das consciências se torna tão medíocre como hoje acontece, há uma natural reação de alguns indivíduos e grupos, que vão radicalizar a sua busca da verdade e da liberdade, a sua busca de quem realmente são”. “É para esses, cujo número aumenta”, conclui, “que Siddhartha, e sobretudo o mundo que para além dele se abre, têm muito a dizer”.
            “Siddhartha” é, em suma, para Borges, um romance para ser lido por “olhos que olhem e olhos que vejam. Olhos que considerem Siddhartha como um personagem literário, criado por Hermann Hesse, ou que o vejam como a possibilidade mais funda de cada um de nós. Olhos que identifiquem Siddhartha como alguém ou, pelo contrário, como o vê Govinda no final da obra, como todas as coisas, na unidade do seu eterno fluir dinâmico e múltiplo. Olhos adormecidos ou despertos”.
            Quando escreveu “Siddhartha”, Hermann Hesse tinha um desejo.
            Olhou de novo em seu redor, como se visse o mundo pela primeira vez. O mundo era belo, estranho e misterioso. Havia azul, amarelo e verde, havia céu e rio, havia florestas e montanhas, tudo belo, tudo misterioso e fascinante, e no meio de tudo estava o leitor, o que despertara, a caminho de si mesmo.


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