CULTURA
QUARTA-FEIRA,
5 JUN 2002
Ler
“Siddhartha” é falar com um amigo que nos indica o caminho
LIVRO À
VENDA HOJE COM O PÚBLICO
“Siddhartha”
faz a narrativa da vida de Siddhartha, filho de brâmane, que um dia decidiu
deixar tudo e partir em viagem, à descoberta de si mesmo, do mundo e do amor. O
que descobriu poderá também o leitor descobrir. O livro, além do prazer da
leitura de uma história bem contada, dá uma ajuda preciosa. Para ler de frente.
Olhos nos olhos.
“Olhou de novo em seu redor, como se visse o mundo pela primeira
vez. O mundo era belo, estranho e misterioso. Havia azul, amarelo e verde, havia
céu e rio, havia florestas e montanhas, tudo belo, tudo misterioso e
fascinante, e no meio de tudo estava ele, Siddhartha, o que despertara, a caminho
de si mesmo.” O excerto pertence a “Siddhartha”, o livro que hoje é vendido com
o PÚBLICO (jornal+livro= 5 euros), e é uma síntese luminosa do essencial do
espírito e da letra budistas. Não foi escrito por nenhum yogi, nenhum monge, nenhum
adepto atingido pelo “satori”, mas por um alemão naturalizado suíço, o qual,
que se saiba, não levitava, nem tinha por costume pronunciar a sílaba sagrada “aum”.
Hermann
Hesse (1877-1962) escreveu “Siddhartha” em 1922 e desde essa data o livro tornou-se
uma espécie de compêndio de vida e manual de aprendizagem espiritual para
muitos ocidentais que nele encontraram eco e caminho. Pode ser lido também como
uma história, na exata medida em que todas as vidas contam uma história.
Siddhartha é um homem apenas um pouco mais disciplinado, um pouco mais inquieto
do que cada um de nós. O seu amigo Govinda segue-o, seguindo um caminho
paralelo. Sigamos na peugada de ambos. “Siddhartha”, entre múltiplas virtudes,
tem uma que convém guardar: é um livro que fala.
Isso
aprendeu-o Hermann Hesse, fruto não só do contacto com a doutrina budista, conformas
também com a filosofia do eterno retorno expressa pelo filósofo idealista e seu
compatriota, Friedrich Nietzsche, cujos livros também falam (“Assim Falava
Zaratustra” até fala demais...). Basicamente, o eterno retorno representa a
negação do tempo e da afirmação de uma eterna instantaneidade à qual tem acesso
apenas a consciência desperta. O Aleph de Jorge Luis Borges e o “satori” do
budismo zen.
O que
aconteceu há dez mil anos está a acontecer agora. O que foi sabido há dez mil anos
pode ser sabido agora. O psicólogo Carl Gustav Jung punha a mesma questão
noutros termos e falava de um estrato psíquico comum a todos os homens, em
todas as épocas. Chamou Inconsciente (há quem prefira o termo
“Ultraconsciente”) Coletivo a esse reservatório de sapiência — e de loucura,
caso o vaso transborde — onde estão inscritos os arquétipos do humano. Se, como
diz Siddhartha, o caminho é do homem para si mesmo — e, como consequência,
porque intimamente todos partilham de uma mesma matriz, de si mesmo para os
outros —, esse caminho terá de passar necessariamente pela navegação através
desse mar desconhecido da mente. Há livros sobre a arte de navegar escritos assim.
“Siddhartha” é um deles.
Hermann
Hesse, um pacifista para quem a civilização ocidental estava amaldiçoada e cada
indivíduo deveria demandar a sua natureza mais íntima, fez, aliás, psicanálise com
um discípulo de Jung, no período de crise desencadeado pela eclosão da Primeira
Grande Guerra. O contacto com as teorias de Jung (que, com Ronald Laing,
haveriam de levar à antipsiquiatria, mas isso é outra história...), reorientou
a sua vida e a sua escrita para obras como “Demian”, “Peregrinação ao Oriente”
e, principalmente, os clássicos “Siddhartha”, “O Lobo das Estepes” e “Narciso e
Goldmundo”.
Buda
está sentado em posição de lótus “dentro” do Inconsciente de Jung. É preciso matar
Buda para ser Buda. A vida é contraditória. O livro “Siddhartha” também.
Significa que está vivo.
O olhar de um budista português sobre o livro
Há muitas e diversificadas maneiras de se ler
“Siddhartha”. Umas mais atentas e reverberantes do que outras. Paulo Borges,
poeta, filósofo e professor, atual vice-presidente da União Budista Portuguesa e
da Songtsen-Casa da Cultura do Tibete, já trilhava a sua própria estrada quando
leu o livro. Terá, portanto, dele, uma visão mais distanciada. “Li o livro
tardiamente, talvez há seis ou sete anos, quando já era budista há muito tempo.
Sendo assim, o seu impacte foi porventura atenuado, porque o que de mais
profundo encontro no livro já a vida e os meus mestres budistas mo tinham inspirado
a descobrir em mim mesmo”, diz o autor de dois livros sobre o modo de ser e
estar português, “Do Finistérreo Pensar” e “Pensamento Atlântico, e que atualmente
prepara a edição das obras de Agostinho da Silva, para a Âncora.
Paulo
Borges olha com olhos multifacetados para Siddhartha, filho de nobres, que um
dia abandonou o ter pelo ser. “Em Siddhartha, tal como em muitas obras de
ocidentais sobre o budismo, há por um lado um certo desconhecimento da
complexidade do Dharma do Buda, que assume aspetos bastante diversos conforme
se fala do Pequeno Veículo, do Grande Veículo ou do Veículo de Diamante. E, por
outro, há
na obra, conforme fica bem nítido no diálogo entre
Siddhartha e o Buda, a típica dificuldade do espírito individualista ocidental
reconhecer que não há a mínima oposição entre seguir-se um mestre e ser-se
obrigado a fazer o seu próprio caminho de auto-descoberta e auto-realização, superando
a relação exterior entre mestre e discípulo”, explica, reconhecendo embora que,
“para além disto”, Hermann Hesse, “não sendo propriamente um budista, não deixa
de oferecer algumas das mais penetrantes visões do sentido da experiência budista”.
Siddhartha
aponta, segundo Paulo Borges, para “a superação de toda a moral”. “A questão
não está”, diz, em “dever ser, isto ou aquilo, deste ou daquele modo, por esta
ou aquela razão, mas antes ser, ser tudo, de todas as maneiras, sem nenhum
porquê nem para quê, transcendendo mesmo a oposição conceptual entre ser e não
ser”. Unidade que o poeta português encontrara já “em Mário de Sá-Carneiro, Fernando
Pessoa e Teixeira de Pascoaes, nos místicos de todas as religiões ou sem
qualquer religião” e nele próprio, “ou seja, em tudo”.
Se
“Siddhartha” ecoará hoje nos corações dos jovens com a mesma força que ecoou
sobretudo nas décadas de 60 e 70, eis uma questão, para Paulo Borges, “difícil
de avaliar”.
Se, por
um lado, acentua que “há hoje um maior conformismo da juventude, encantada com
a perspetiva do sucesso, do bem-estar material, dos prazeres fáceis e
imediatos”, por outro, torna-se-lhe claro que “quando o estado geral das
consciências se torna tão medíocre como hoje acontece, há uma natural reação de
alguns indivíduos e grupos, que vão radicalizar a sua busca da verdade e da
liberdade, a sua busca de quem realmente são”. “É para esses, cujo número
aumenta”, conclui, “que Siddhartha, e sobretudo o mundo que para além dele se
abre, têm muito a dizer”.
“Siddhartha”
é, em suma, para Borges, um romance para ser lido por “olhos que olhem e olhos
que vejam. Olhos que considerem Siddhartha como um personagem literário, criado
por Hermann Hesse, ou que o vejam como a possibilidade mais funda de cada um de
nós. Olhos que identifiquem Siddhartha como alguém ou, pelo contrário, como o
vê Govinda no final da obra, como todas as coisas, na unidade do seu eterno
fluir dinâmico e múltiplo. Olhos adormecidos ou despertos”.
Quando
escreveu “Siddhartha”, Hermann Hesse tinha um desejo.
Olhou
de novo em seu redor, como se visse o mundo pela primeira vez. O mundo era
belo, estranho e misterioso. Havia azul, amarelo e verde, havia céu e rio,
havia florestas e montanhas, tudo belo, tudo misterioso e fascinante, e no meio
de tudo estava o leitor, o que despertara, a caminho de si mesmo.
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