CULTURA
QUINTA-FEIRA,
19 SET 2002
Crítica Música
Pós-rock RADIANte
Looking
for a Thrill
Lisboa,
Paradise Garage
16 e 17 de
Setembro, às 21h
Sala a 3/4
Considerando
que o pós-rock é um género agonizante, a exibição do catálogo da editora norte-americana
especialista na matéria, Thrill Jockey, que teve lugar, segunda e terça-feira, no
Paradise Garage, sob o genérico “Looking for a Thrill”, pode considerar-se um
êxito. Não que qualquer das seis bandas, mais um karaokeiro, que passaram pelo
palco de um Garage cheio, mas não a abarrotar (a transpiração coletiva chegou,
no entanto, para transformar o recinto em sauna), tivesse sido brilhante.
Tratou-se mais de uma reunião de amigos e da celebração de um certo estado de espírito
“underground”.
De tal forma amigável que ao mesmo tempo que os músicos tocavam,
as pessoas continuavam a conversar em voz alta, provocando um “agradável”
burburinho de fundo que se manteve ao longo das perto de oito horas de
concertos. Toda a gente, dos músicos, em constante circulação pela sala, ao
“staff” da editora e ao público, estava radiante.
Segunda, 16: Bobby Conn, The Sea
and Cake, Tortoise
Arrancou com o “entertainer” Bobby Conn, que nos discos goza de maneira
séria e gosta que lhe chamem anticristo, mas que no Garage optou por uma sessão
de karaoke, cantando e tocando guitarra elétrica sobre acompanhamento pré-gravado.
Em fato de treino vermelho e com o rosto maquihado, Conn fez de “crooner”
marado.
Possuidor de inegáveis talentos vocais, usou-os para mimar o
número de David Bowie ou para acertar as notas com o rock’n’roll ou sobre o absurdo
de batidas disco/funk. Também deixou escorregar as calças para mostrar um
bocado do rabo, dando assim a conhecer o seu talento musical sob outro ângulo. A
arte é isto mesmo. Podemos perfeitamente imaginar Charlie Parker a desapertar a
braguilha durante um solo de saxofone alto ou Maria Callas a levantar o vestido
num “fortissimo” mais sensual, como ações enriquecedoras do génio artístico.
Os Sea and Cake não mostraram o rabo mas tornaram claro que
ainda lhes falta pedalar muito para conferir a necessária fluência a uma música
que tenta viver de subtilezas e recuperar o swing, por vezes “canterburyano”, de
uns Caravan ou Gilgamesh, mas sofre do primarismo instrumental dos seus
intérpretes. Rob Mazurek bem tenta dar-se ares de “jazzman”, mas a noção que
tem de jazz esgota-se na estridência e na articulação de fraseados estafados
que rapidamente descambam em “clichés”.
A fechar a primeira noite de arrepios, os Tortoise, de regresso
ao Garage, confirmaram o estatuto entretanto adquirido de estrelas do pós-rock.
Entraram em força e provocação, com uma amálgama de “noise” armadilhado, mas
rapidamente a música, maioritariamente retirada do último álbum, “Standards”,
condescendeu com um easy-listening camuflado que tanto se enrolava no “groove”
dos Stereolab como roçava a indolência do “lounge” com pinta de intelectual.
Mal vai o pós-rock quando se contenta em pavonear-se numa jaula
de cristal...
Terça, 17: Chicago Underground
Duo, Radian, Eleventh Dream Day, Trans AM
Foi melhor. Menos “pós”, mais rock e anti-rock.
Primeiros em palco: Chicago Underground Duo. De novo Mazurek a
apitar, desta feita apoiado na bateria e nas ondulações de vibrafone de Chad
Taylor. “Synesthesia” e “Axis and Alignment” são álbuns saborosos de timbres e texturas
requintadas. Ao vivo é mais simples mas não menos agradável. Em apenas três
temas, Chad teve oportunidade de construir uma capela de percussões à maneira
dos Art Ensemble of Chicago e Mazurek de disparar uma programação rítmica “roubada”
a “Zero Set”, álbum de Dieter Moebius, Conny Plank e Manu Neumeier.
Seguiram-se os austríacos Radian com o melhor concerto da
mostra. Obviamente inspirados no nevoeiro tóxico dos This Heat, o trio
concentrou-se na música do novo álbum, “Rec.Extern”, sem facilitar. As
frequências maceradas dos Cabaret Voltaire, o industrialismo de “Live in der
Fabrik”, dos Cluster, e o tribalismo dos Can obscuros de “Tago Mago” e “Limited
Edition”, assomaram como influências perfeitamente assimiladas numa visão claustrofóbica
e venenosa de rock — ou anti-rock — eletrónico, elaborado sobre um jogo de
tensões e ameaças. Uma lição de integridade.
Rock, a atirar para o punk, foi a fórmula servida pelos Eleventh
Dream Day. Dose reforçada de adrenalina que no último tema deu uma reviravolta,
através de uma versão esfarrapada de “I’ll come running”, de Brian Eno, do
álbum “Another Green World”.
Esperava-se dos Trans AM, a quem coube o encerramento de
“Looking for a Thrill”, a apoteose e o apocalipse. Mas os rapazes estão noutra
onda (estão sempre noutra onda...).
Oscilantes entre o rock avassalador, que é o que fazem melhor,
de “Red Line”, e a atual vaga de trejeitos “eighties” (começam a tornar-se insuportáveis
as frases ordinárias de sintetizador copiadas dos Tubeway Army e dos Human League),
tropeçaram na “soul” sem alma, chamaram para o palco, em dois temas, a corneta
de Mazurek, fizeram o truque das vozes “vocoderizadas” e, num lampejo final, acenderam
piras de fogo a acompanhar um solo de bateria de Sebastian Thomson — um
castigador de tambores portentoso e sustentáculo principal da torre Trans AM.
Melhor momento: um vulcão escancarado por duas baterias, guitarras em fúria, e
a mesma dança primitiva dos 23 Skidoo.
Funcionando como separador, foi possível assistir à projeção do filme
“Looking for a Thrill”, composto por uma sequência de monólogos de artistas da
editora. Num deles, Thurston Moore, dos Sonic Youth, recordou um dos primeiros concertos
a que assistiu em Nova Iorque: dos Suicide, e da sua procissão de atrocidades.
Teve medo, confessou. Outros tempos...
EM RESUMO
O melhor O
Paradise Garage viveu em apoteose a celebração e decadência do pós-rock.
No meio das estrelas Tortoise e Trans AM, foram os obscuros
Radian a fazer a diferença
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