CULTURA
SEGUNDA-FEIRA,
24 JUN 2002
Crítica Música
dEUS aos gritos
dEUS
Lisboa, Coliseu dos Recreios
22 de Junho, 22h
Sala quase cheia
Não
foi um mau concerto, longe disso, o que os belgas dEUS deram no sábado à noite,
no Coliseu dos Recreios, em Lisboa. Deus não pode ser mau e o grupo tem culto formado
em Portugal, pelo que tudo se conjugou para que a comunhão funcionasse. Como funcionou.
Ficaram, todavia, uma série de enigmas a pairar no ar, mistérios insondáveis, extensíveis,
de resto, às apresentações ao vivo de uma enorme quantidade de bandas pop que
são excelentes em disco e se vulgarizam ao vivo. Um conjunto de fenómenos a
justificar algumas considerações de índole filosófica.
No caso
concreto dos dEUS, podem colocar-se as seguintes questões: 1) Para quê utilizar
um violinista, se o violino, a maior parte das vezes, não se ouve? 2) Qual a
necessidade de tocar guitarras com seis cordas, quando uma só chegava para
fazer o mesmo ruído? 3) Que sentido tem escrever letras de canções se, devido
ao ruído e à distorção, não se consegue perceber uma palavra?
Perguntas que
caberão aos sociólogos, poetas e construtores de instrumentos responder mas que
atravessaram o Coliseu dos Recreios em mais do que uma ocasião.
Os dEUS são uma
banda pop não ortodoxa, embora já o tivessem sido mais. Quer dizer, não são
toscos, cometendo inclusive a ousadia de compor canções com esquinas, curvas e pormenores
que vão além da açorda vulgar da chamada “pop alternativa”, quase sempre
soturna, cruel e/ou magoada, mas raramente capaz de ultrapassar a mediania no
que respeita a fazer valer musicalmente, com alguma originalidade, o conceito
teórico subjacente.
Há no grupo
belga um lado de “vaudeville” e uma noção de conjunto “orquestral” que se faz sentir
no jogo cruzado das guitarras ou, no caso concreto do concerto lisboeta, se
manifestou na utilização de um coro de vozes femininas (as Sissy Spacek
Singers, pelo menos assim nos pareceu ter ouvido...), a servir, na teoria, de contraponto.
É assim nos
álbuns. Não foi bem assim ao vivo. Em geral, as canções — sobretudo, as do
último álbum de originais, “The Ideal Crash” — começavam bem articuladas, isto
é, com os diversos órgãos que se unem para formar corpo orgânico, discerníveis nas respetivas funções. Só que os dEUS sucumbiram
às trevas do Inferno, ao fazerem das tripas confusão, enveredando, mais do que
os ouvidos julgaram ser necessário, por um “wall of sound” ensurdecedor, onde
cada nota se atolava na lama de um “noise” nem sempre adequado e, amiúde, em
contradição, com o enunciado dos temas. Será o tal “Ideal crash”, o “choque
ideal” anunciado?
Claro, nota-se
que o legado dos Velvet Underground andou por ali a fazer das suas, e que também
John Cale pouco espaço de silêncio teria então para fazer ouvir a sua viola de arco no meio das orgias instrumentais ao vivo do
grupo.
A questão está
em que — e daí talvez a incomodidade, sentida como contradição — ao contrário
dos Velvet, que eram a própria essência do veneno, da overdose elétrica e do
excesso existencial do rock, os dEUS têm o coração na pop, numa conceção burguesa
da pop.
Mas como o Deus
dos dEUS será também o Deus da ira, perdoa-se. Mais importante do que clamar
pelo Dia do Juízo Final da pop é que o ritual cumpra o seu papel de unificação.
E esse, não restaram quaisquer dúvidas, cumpriu-se no Coliseu dos Recreios. dEUS
manifestou-se, uma vez mais, ao público português. E o milagre repetiu-se.
EM RESUMO
O melhor O
milagre da comunicação com uma assistência em êxtase cumpriu-se uma vez mais. dEUS
é português.
O pior O
“noise” ensurdecedor que envolveu as canções.
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