CULTURA
QUARTA-FEIRA,
7 MAR 2001
Crítica
Música
Os Calexico contaram uma anedota
Calexico e Shannon Wright
Lisboa, Paradise Garage
4 de Março, 22h.
Lotação esgotada.
Na primeira
apresentação ao vivo em Portugal dos Calexico, domingo, no Paradise Garage, em
Lisboa, integrada na programação do festival Super Rock Super Bock, a ilusão
foi perfeita. Um programa de variedades ao qual nem sequer faltou Paulo
Bragança na pele de um cowboy. Shannon Wright sangrou na primeira parte. Ela e
o grupo são amigos e tocaram juntos, mas entre a cantina mariachi dos Calexico
e a fome de tudo de Shannon a diferença é abissal.
Fomos
moldados pela história para acreditar que o rock é uma forma de rebelião
juvenil. Coisa que ele, hoje, e salvo raras e honrosas exceções, não é. Sem
levar sequer em conta o facto de dificilmente qualquer tipo de rebelião ser
compatível com o ruído das caixas registadoras, o rock é nos dias que correm
uma gigantesca fábrica de ilusões.
O bom rocker
é o bom ilusionista, capaz de manejar com habilidade os diferentes imaginários,
simbologias e citações que sobraram quer das décadas douradas de 50 e 60, quer
das posteriores (des)orientações. Melhor ainda se conseguir fazer o público
entrar na ilusão, dos ingénuos que realmente acreditam, aos que do rock apenas
pretendem retirar o máximo gozo possível.
Tudo isto
vem a propósito da estreia ao vivo em Portugal dos norte-americanos Calexico,
nativos do Tucson, Arizona, região fronteiriça com o México. O que a banda de
Joey Burns e John Convertino apresentou no passado domingo, no Paradise Garage,
em Lisboa, foi uma divertida mistificação, sitcom musical de sombrero na cabeça
e copo de tequila na mão. Os Calexico são os pistoleiros da "Patrulha
Perdida" de Sam Peckinpah, uma banda sonora de Ennio Morricone, um disparo
de Lucky Luke mais lento que a própria sombra, uma bebedeira no pátio das
traseiras de um saloon chunga.
A
autenticidade da sua música, presente em álbuns como "The Hot Rail" e
canções como "El picador", "Ballad of cable hogue",
"Service and repair" ou "Crystal frontier", é a da acuidade
da anedota. No Paradise, ouviram-se trompetes mariachi – tornados imagem de
marca do estilo Calexico – crooning chicano e Leonard coheniano, uma pedal
steel (por um elemento dos Lambchop) e um vibrafone a sustentarem a ressaca e,
acima de tudo, o tal rock que aprendeu a vivissectar os lugares e as memórias.
Quando, a meio do concerto, Paulo Bragança subiu ao palco e se juntou aos
Calexico (seus confessos admiradores, bem como do fado em geral), vestido de
fadista-cowboy, para esganiçar a voz como uma galinha em fuga no primeiro tema
e entrar a matar no segundo, castiço, sim, mas com compostura, tudo fez de
súbito sentido - a imagem vibrátil da miragem, o sol implacável que torra os
cérebros, o fado negro sem sombras, a alucinação, enfim. Um quadro kitsch
pintado em cores berrantes para pendurar numa loja dos trezentos.
Quando
Shannon Wright – que na primeira parte, com uma guitarra, um piano elétrico e
uma voz e palavras em derrocada, recordou que o rock pode ser afinal essa outra
coisa chamada catarse emocional – se juntou ao grupo para cantar "I
started a joke" (atente-se no título), dos Bee Gees, já a comédia fora
assimilada em delírio por todos. Mas, entre tanta fancaria, em pleno bailarico,
faltava instalar a dúvida. Mesmo a terminar, os Calexico assanharam-se e
desferiram o disparo mortífero, mas este já não de pólvora seca, emaranhando-se
num som subitamente denso e ameaçador. Sabe-se como no deserto, à noite, a
paisagem é completamente diferente do dia. Pelo menos nos filmes.
EM RESUMO
A diferença Na noite de miragens e diversões
várias dos Calexico, Shannon Wright fez a diferença. Aos trompetes mariachi do
grupo contrapôs, com guitarra e piano, golpes de emoção pura.
A anedota A dimensão kitsch do universo
dos Calexico tornou-se notória com a inclusão de "I started a joke, um
tema dos Bee Gees.
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