22/11/2016

Quem tem Teresa tem Graça [Madredeus]

CULTURA
DOMINGO, 7 ABR 2001

Crítica Música

Quem tem Teresa tem Graça


Madredeus
Parque da Cidade, Porto
5 de Abril, 22h.
Lotação a dois terços

Chuva, obras, trânsito caótico, buracos, chuva, obras, buracos. O centro do Porto está a saque. Se em relação à chuva será difícil fazer alguma coisa, já em relação às obras, o bom senso não aconselharia a que estas se fizessem antes e não durante o ano do Porto-2001? Por tudo isto, as cerca de 1000 pessoas que estiveram presentes, na noite de quinta-feira, numa tenda chapitô instalada no parque da Cidade, para ouvir a estreia ao vivo do novo álbum dos Madredeus, "Movimento", sentiram-se no céu. Céu que ainda estará disponível, no mesmo local, hoje, a 12, 13 e 14, seguindo depois para Lisboa, em espetáculos marcados para os dias 19, 20, 21, 24, 27 e 28, no Parque das Nações.
O teto da tenda estava, de resto, coberto de estrelas, mas o fundo era vermelho, da cor do vestido de Teresa Salgueiro. A música dos Madredeus, essa, está cada vez mais azul. "Parece uma igreja!" foi um dos comentários murmurados em surdina por alguém pasmado com a solenidade de uma assistência que parecia estar ali para assistir à celebração de um culto e não para presenciar um concerto de música. Não se ouvia uma mosca. Uma palavra sussurrada para o lado. Um espirro, uma tossidela, uma fungadela. Não se ouvia nada. Decididamente, a música e o público dos Madredeus têm pouco a ver com a fúria do rock'n'roll.
Com início às dez horas, os Madredeus deram início à liturgia, perdão, ao concerto. Foram tocados todos os temas do novo disco, embora sem seguir o mesmo alinhamento, em alternância com "êxitos" mais antigos como "Oxalá", "Pomar das laranjeiras", "A tempestade" e, já no encore, "Haja o que houver". Falta rodagem, mas o essencial já lá está: as canções, algumas delas desde já merecedoras de figurar no livro dos clássicos dos Madredeus, o rigor cada vez mais de músicos de câmara dos quatro instrumentistas e, acima de tudo, a beleza intocável da voz de Teresa Salgueiro. Imaculada, como sempre.  Num mundo a naufragar em vagas cada vez mais encarpeladas, a música dos Madredeus flui como as águas de um rio que desliza devagar. Descendo lentamente meio tom de cada vez.
Dos novos clássicos, dois há que rondam o sublime: "O labirinto parado" e "Graça – a última ciência". Lá perto andam "Afinal – a minha canção", "O segredo do futuro" e "Tarde, por favor". Na última canção da 1ª parte, "Brumas do futuro", composta de parceria com António Victorino de Almeida, em dedicatória aos capitães do 25 de Abril, uma surpresa: a presença em palco, ao piano, do próprio maestro. O tema não é grande coisa, assim com laivos de Nino Rota e cançoneta, o maestro e os sintetizadors de Carlos Maria Trindade não chocaram de frente, mas o mais extraordinário foi comprovar que é possível instalar num palco um piano de cauda em apenas três segundos. Nem a Ferrari, numa troca de pneus, faria melhor.
Depois de um intervalo aproveitado por quase toda a gente para socializar, os Madredeus regressaram para concluir a apresentação de "Movimento". "Graça – a última ciência" foi cantada por Teresa Salgueiro de forma emocionante, com garra (é raro vê-la com as garras de fora), sobre cascatas de cristal de harpa, emulada por Carlos Maria Trindade no sintetizador. Quem tem Teresa tem Graça. O mesmo se poderá dizer de "O segredo do futuro". Apesar da segunda parte ser "Qué sera, sera" mais Aphrodite's Child, é uma grande canção. Teresa Salgueira não é nem Joan Baez nem Demis Roussos. Graças a Deus.
Antes de "A quimera" fechar o concerto, foi feita pela cantora a apresentação dos músicos, caso alguém não soubesse. "Esqueci-me de dizer que a cantar está a Teresa Salgueiro", disse a terminar. Ah, então ela era a do vestido! Também agradeceu, sobretudo ao Porto-2001 que, afinal, parece que existe.
"Tarde por favor", uma das melhores interpretações da noite, swingante de sensualidade e ascetismo estremunhado, "Haja o que houver" (saudada com muitos aplausos pela assistência que até aqui nunca tinha perdido a compostura) e "Vozes no mar" preencheram os encores.
O maior defeito dos Madredeus? A simplicidade. A maior virtude? A simplicidade. É como na vida – tudo depende do ponto de vista.

EM RESUMO
Barricada de silêncio: De um lado, o silêncio de onde nasce a voz de Teresa Salgueiro. Sagrado. Do outro, o silêncio de uma assistência que não tugiu nem mugiu. Assombrada.

Sem comentários: