CULTURA
DOMINGO, 7
ABR 2001
Crítica
Música
Quem tem Teresa tem Graça
Madredeus
Parque da Cidade, Porto
5 de Abril, 22h.
Lotação a dois terços
Chuva, obras, trânsito caótico, buracos, chuva,
obras, buracos. O centro do Porto está a saque. Se em relação à chuva será
difícil fazer alguma coisa, já em relação às obras, o bom senso não
aconselharia a que estas se fizessem antes e não durante o ano do Porto-2001?
Por tudo isto, as cerca de 1000 pessoas que estiveram presentes, na noite de
quinta-feira, numa tenda chapitô instalada no parque da Cidade, para ouvir a
estreia ao vivo do novo álbum dos Madredeus, "Movimento", sentiram-se
no céu. Céu que ainda estará disponível, no mesmo local, hoje, a 12, 13 e 14,
seguindo depois para Lisboa, em espetáculos marcados para os dias 19, 20, 21,
24, 27 e 28, no Parque das Nações.
O teto da tenda estava, de resto, coberto de
estrelas, mas o fundo era vermelho, da cor do vestido de Teresa Salgueiro. A
música dos Madredeus, essa, está cada vez mais azul. "Parece uma
igreja!" foi um dos comentários murmurados em surdina por alguém pasmado
com a solenidade de uma assistência que parecia estar ali para assistir à
celebração de um culto e não para presenciar um concerto de música. Não se
ouvia uma mosca. Uma palavra sussurrada para o lado. Um espirro, uma tossidela,
uma fungadela. Não se ouvia nada. Decididamente, a música e o público dos
Madredeus têm pouco a ver com a fúria do rock'n'roll.
Com início às dez horas, os Madredeus deram
início à liturgia, perdão, ao concerto. Foram tocados todos os temas do novo
disco, embora sem seguir o mesmo alinhamento, em alternância com
"êxitos" mais antigos como "Oxalá", "Pomar das laranjeiras",
"A tempestade" e, já no encore, "Haja o que houver". Falta
rodagem, mas o essencial já lá está: as canções, algumas delas desde já
merecedoras de figurar no livro dos clássicos dos Madredeus, o rigor cada vez
mais de músicos de câmara dos quatro instrumentistas e, acima de tudo, a beleza
intocável da voz de Teresa Salgueiro. Imaculada, como sempre. Num mundo a naufragar em vagas cada vez mais
encarpeladas, a música dos Madredeus flui como as águas de um rio que desliza
devagar. Descendo lentamente meio tom de cada vez.
Dos novos clássicos, dois há que rondam o
sublime: "O labirinto parado" e "Graça – a última ciência".
Lá perto andam "Afinal – a minha canção", "O segredo do
futuro" e "Tarde, por favor". Na última canção da 1ª parte,
"Brumas do futuro", composta de parceria com António Victorino de
Almeida, em dedicatória aos capitães do 25 de Abril, uma surpresa: a presença
em palco, ao piano, do próprio maestro. O tema não é grande coisa, assim com
laivos de Nino Rota e cançoneta, o maestro e os sintetizadors de Carlos Maria
Trindade não chocaram de frente, mas o mais extraordinário foi comprovar que é
possível instalar num palco um piano de cauda em apenas três segundos. Nem a
Ferrari, numa troca de pneus, faria melhor.
Depois de um intervalo aproveitado por quase
toda a gente para socializar, os Madredeus regressaram para concluir a
apresentação de "Movimento". "Graça – a última ciência" foi
cantada por Teresa Salgueiro de forma emocionante, com garra (é raro vê-la com
as garras de fora), sobre cascatas de cristal de harpa, emulada por Carlos
Maria Trindade no sintetizador. Quem tem Teresa tem Graça. O mesmo se poderá
dizer de "O segredo do futuro". Apesar da segunda parte ser "Qué
sera, sera" mais Aphrodite's Child, é uma grande canção. Teresa Salgueira
não é nem Joan Baez nem Demis Roussos. Graças a Deus.
Antes de "A quimera" fechar o
concerto, foi feita pela cantora a apresentação dos músicos, caso alguém não
soubesse. "Esqueci-me de dizer que a cantar está a Teresa Salgueiro",
disse a terminar. Ah, então ela era a do vestido! Também agradeceu, sobretudo
ao Porto-2001 que, afinal, parece que existe.
"Tarde por favor", uma das melhores
interpretações da noite, swingante de sensualidade e ascetismo estremunhado,
"Haja o que houver" (saudada com muitos aplausos pela assistência que
até aqui nunca tinha perdido a compostura) e "Vozes no mar"
preencheram os encores.
O maior defeito dos Madredeus? A simplicidade.
A maior virtude? A simplicidade. É como na vida – tudo depende do ponto de
vista.
EM RESUMO
Barricada de silêncio: De um lado, o silêncio de onde nasce a voz de Teresa Salgueiro.
Sagrado. Do outro, o silêncio de uma assistência que não tugiu nem mugiu.
Assombrada.
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